Era uma neta de escravos que derrubava até cinco homens com uma rasteira só”. Assim um aluno da 6ª série descreveu Maria Antonia Chules Princesa, a mulher que deu nome à escola onde estuda. Para ele e os colegas, todos de comunidades remanescentes de quilombos no Vale do Ribeira, em São Paulo, a imagem corresponde a de uma verdadeira heroína. A exaltação do negro guerreiro é uma das características de um tipo de estabelecimento de ensino que só apareceu em 2004 e cresce rápido pelo Brasil: as escolas quilombolas.

À primeira vista, são instituições comuns, com a mesma estrutura física e disciplinas das outras escolas públicas, mas a cultura em que estão inseridas as difere em público e rotina. Quilombola significa grupo formado por descendentes de escravos foragidos em quilombos. Embora o tema remeta ao passado, em termos de educação é bastante novo. O primeiro Censo Escolar do Ministério da Educação (MEC) a citar as instituições foi o de 2004, quando haviam 364 delas em todo o País. Agora, já são 1.696.

A demora segue o bonde da história. O direito à terra, que ocupam há séculos, foi garantido a essas famílias apenas pela Constituição de 1988. Ainda assim, mais da metade das 1.453 comunidades quilombolas reconhecidas pela Fundação Palmares, ligada ao governo federal, ainda não conseguiu os títulos de propriedade que devem ser dados pelos Estados. Só nas áreas regularizadas, as escolas existentes se tornaram quilombolas e os líderes comunitários puderam exigir a construção de novas unidades, que oferecessem mais do que a precária alfabetização a que estavam acostumados até então.

“Em muitos lugares havia uma casinha onde algum representante de igreja, entidade filantrópica ou deles mesmos davam aulas, e boa parte das crianças saíam da comunidade para ir à escola mais próxima, mas os analfabetos eram maioria”, diz a responsável por Educação Quilombola do MEC, Maria Auxiliadora Lopes.


Socialismo negro
Inaugurada em 2005, a Maria Antonia Chules Princesa, no Vale do Ribeira, é uma instituição estadual, que fica no Quilombo André Lopes, na cidade de Eldorado (SP). Como é a única da região que oferece até o ensino médio, atende às quilombolas vizinhas de Ivaporunduva, Pedro Cubas, São Pedro e Pilões, todas no mesmo município. Pintada com o tradicional verde claro que caracteriza a maioria das escolas do interior, a instituição foi cercada por um muro alto e sem reboque. A diretora, Ligia dos Santos, diz que os quilombolas queriam se proteger do assédio de ONGs e da imprensa. “Eles não deixam fotografar o rosto das crianças e desconfiam de tudo”, conta. Branca, ela foi aprovada para o cargo por concurso, mas teve dificuldade em ser aceita.

“Tudo aqui eles votam. É um socialismo”, diz, explicando que a escola mantém um conselho formado por representantes de todas as quilombolas. Para a escolha da equipe de merenda e limpeza, por exemplo, foi feita uma reunião em que foram definidas as características necessárias. Depois, cada conselheiro promoveu um debate em sua comunidade e voltou com três nomes. Por último, foi feito um sorteio. “Aí, todos aceitaram”, lembra aliviada.

Da mesma maneira, os quilombolas escolheram para administrar a unidade Roseli Dias da Silva, uma professora negra e criada no bairro. Ela foi a responsável pela escola nos dois primeiros anos, até que houve um concurso para a direção e ela não estava entre os aprovados. “Cheguei a ficar um mês fora, mas eles fizeram tanto protesto que conseguiram minha nomeação de volta”, diz a pedagoga que atualmente ocupa o cargo de vice-diretora.



Vocabulário próprio
Hoje, a educadora branca conquistou boa convivência com as famílias negras, mas as diferenças ainda são reforçadas no dia-a-dia. “Às vezes, um menino chega, fala algo rápido, eu não entendo e peço para repetir. Outro dia, um revidou: estou falando quilombola.” O dialeto impreciso parece caipira. Falam “nhá” como sinônimo de senhora e “a benção” é uma maneira de dizer oi, mas alguns termos não são fáceis de entender. “Nhônhô” é moleque, “minsói” significa fulano e “guaquejar” é um verbo usado quando alguém faz piadas da franqueza alheia.

Em situações como essa, Roseli se torna uma intérprete não apenas para Ligia, mas também para os 23 professores que vieram de fora, enquanto apenas três são das quilombolas. “Para quem não é daqui, eles podem parecer fechados demais, mas eu vejo como uma forma de se protegerem. Até pouco tempo atrás, quilombola não era nada, a maioria vivia aqui no quilombo sem nem saber o que significava, só sabia que não tinha direito. Agora que se fortaleceram, querem preservar ao máximo suas características”, opina.

A geografia do local ajuda a manter distância. O ponto de referência mais conhecido é a Caverna do Diabo, uma gruta no alto do morro. A maioria dos alunos, que vem de Ivaporunduva, precisa fazer uma travessia de barco para ir e voltar da escola e o centro da cidade fica a 35 quilômetros de distância, e só pode ser acessado por uma estrada que se torna intransitável em toda a estação de chuvas.

Brancos adaptados à cultura negra
Entre os 415 alunos, há raros, mas integrados brancos. Estão tão bem adaptados, que a direção nunca contou quantos eram. “Os que estão aqui são de famílias que chegaram antes da mudança na Constituição. Hoje, talvez encontrassem mais resistência para se instalar, já que agora os quilombolas têm a posse da terra”, explica Roseli.

Uma das meninas, que além da pele tem olhos claros, costuma ser uma das mais animadas na cantoria de congadas, músicas folclóricas com influência africana que costumam ser entoadas nas festas religiosas. “Eu adoro. Participo sempre”, comentou.

Por enquanto, a música e a comida típica, servida apenas em datas festivas, são os maiores diferenciais na rotina da escola Maria Antonia Chules Princesa, em comparação com as demais instituições públicas da região.



Currículo diferente deve vir aos poucos
As sonhadas mudanças no currículo para incorporar a cultura local ainda não ocorreram. Diferente das escolas indígenas, que costumam ter horários ou dias próprios para repassar seus costumes e saberes, a maioria das quilombolas segue o currículo comum. A exceção fica na comunidade Kalunga, em Goiás, que teve a história do povoado publicada em livro usado nas aulas. “O material que é feito para uma região não serve para outra, que tem manifestações culturais diferentes”, explica Maria Auxiliadora, do MEC, para quem isso deve mudar em poucos anos. “Quando os atuais alunos se formarem vão ter um olhar diferenciado e produzir material em que os demais se enxerguem.”

A coordenadora de História da diretoria de ensino do Vale do Ribeira, Aparecida Fátima Pereira, conversa com os colegas para que valorizarem nas aulas pontos importantes que, em geral, são pouco comentados no ensino clássico. “Por que Grécia e Roma é que são berço da humanidade se o homem foi descoberto na África? Acho que essa diferenciação tem que ser feita aqui e pode servir para todas as escolas no futuro”, comenta.

Das escolas quilombolas atuais, 56% se concentram no Maranhão, na Bahia, em Minas Gerais, em Pernambuco e no Pará, mas com exceção de Acre, Amazonas e Rondônia, todos os Estados já possuem alguns desses estabelecimentos de ensino.

Fonte:Portal Geledés