Nontombi Naomi Tutu
"A África do Sul não está livre do apartheid"
Filha de Desmond Tutu - ganhador do Prêmio Nobel da Paz - diz que o poder econômico continua com os brancos e que os negros ainda vivem segregados
Solange Azevedo
TERRA NATAL
Respeitada ativista de direitos humanos
fala sobre a África do Sul
Nontombi Naomi Tutu, 50 anos, fala de maneira eloquente sobre a própria história e sobre a sólida experiência como ativista de direitos humanos. Terceira filha do arcebispo anglicano Desmond Tutu – ganhador do Prêmio Nobel da Paz de 1984 pela luta contra o apartheid –, Nontombi lecionou em universidades como a de Cidade do Cabo, na África do Sul, e de Hartford e Connecticut, nos Estados Unidos. Atualmente, é consultora de ONGs internacionais que combatem a violência contra a mulher e dão suporte para famílias devastadas por doenças como Aids e câncer em países africanos. Mãe de dois filhos, Nontombi vive atualmente em Nashville, capital do Estado americano de Tennessee. “O fim do apartheid não trouxe benefícios econômicos para a maior parte da população negra”, disse à reportagem de ISTOÉ. “Quem viveu sob o regime do apartheid sabe que, apesar de a Constituição sul-africana pregar que todos são iguais, as coisas ainda não são bem assim.” A seguir, os principais trechos da entrevista.
"A nação arco-íris (termo defendido por Desmond
Tutu) é um sonho que ainda não foi alcançado"
“O poder econômico continua nas mãos dos brancos. Mas o
papel de Nelson Mandela não pode ser minimizado"
A segregação racial ainda é forte na África do Sul?
Infelizmente, sim. A África do Sul não está completamente livre do apartheid. O racismo ainda existe e é muito forte. Mas isso não é uma surpresa porque somos uma democracia jovem. Nossa primeira eleição democrática ocorreu apenas 17 anos atrás. Além disso, o fim do apartheid não trouxe benefícios econômicos para a maior parte da população negra. Diversas gerações cresceram aprendendo que os negros eram menos seres humanos do que os brancos e viveram segregadas durante décadas. Isso não se muda de uma hora para outra. Quem viveu sob o regime do apartheid sabe que, apesar de a Constituição sul-africana pregar que todos são iguais, as coisas ainda não são bem assim.
O combate ao racismo foi ineficaz?
O papel da Comissão de Reconciliação e Verdade, de certa maneira, foi mostrar o significado do apartheid para o povo sul-africano e quanto ele desumanizou as pessoas. O trabalho foi bom, uma tentativa bastante corajosa de lidar com a população e suas expectativas pós-conflito. Mas não ocorreu nenhum milagre. Foi um bom e importante primeiro passo. Acho que a comissão deveria ter funcionado por mais tempo, já que os efeitos do apartheid ainda estão muito fortes e presentes nas relações sociais ainda hoje. A maior parte dos negros continua nos mesmos distritos em que viviam durante o apartheid e a grande maioria das crianças negras continua em escolas segregadas. Com isso, as possibilidades futuras de disputarem vagas com os brancos no mercado de trabalho ou mesmo de abrirem negócios próprios ficam muito limitadas. Além disso, muitas das pessoas que comandaram atrocidades não foram responsabilizadas.
Analistas dizem que a “nação arco-íris”, termo defendido pelo seu pai, é um conto de fadas. A sra. concorda?
Não concordo plenamente. A nação arco-íris é um sonho que ainda não foi alcançado. É verdade que a miscigenação não é uma realidade. Mas percebo que há diversos lugares em que as pessoas estão tentando fazer da África do Sul um país de diversidade.
Principalmente por causa do apartheid econômico, o papel de Nelson Mandela tem sido questionado nos últimos tempos...
É verdade que o poder econômico permanece nas mãos dos homens brancos e que a democratização da economia não ocorreu. Esse foi um dos fracassos da transição política. Mas Nelson Mandela exerceu um papel incrível e a sua importância para a África do Sul não pode ser minimizada. Deveríamos, sim, ter dado mais importância para o apartheid econômico – e não apenas para o apartheid político e racial. Mas isso não significa que Mandela fez pouco. Ele nos moveu em direção à esperança. Quando ele foi eleito, muita gente achou que haveria conflito racial no País, e não houve. Por isso, a luta de Mandela pela reconciliação entre brancos e negros foi fundamental.
Recentemente, houve episódios de xenofobia quando imigrantes de países vizinhos foram mortos na África do Sul. A sensação de conflito é iminente?
Isso está ocorrendo em vários países, e não apenas na África do Sul. O que nos deixa numa posição mais frágil é sermos uma democracia recente. Mas nosso povo é bastante resiliente e corajoso. Não fomos destruídos pelo apartheid e não acredito que seremos destruídos agora. Culpar os estrangeiros pelas altas taxas de desemprego é um caminho mais fácil do que perguntar por que os nossos serviços não funcionam bem. Hoje, a África do Sul não tem um líder político forte o suficiente para dizer que isso não é aceitável no País.
Assim como em outros países, as mulheres sul-africanas ainda são tratadas como cidadãs de segunda classe?
A África do Sul continua sendo um país extremamente patriarcal. A ideia de que o homem tem o direito de fazer o que achar que é correto com sua esposa, suas filhas e com as outras mulheres da sociedade ainda é muito forte. Por isso, as taxas de violência doméstica e sexual são altíssimas. A Constituição sul-africana, em termos de acesso e direitos, é uma das melhores do mundo. Mas ela não é respeitada. Além de ser um problema de saúde pública, a pandemia de Aids também é uma questão de gênero porque as mulheres são infectadas por seus parceiros e têm desenvolvido a doença mais cedo do que os homens. O impacto social disso é enorme. Há muitas mulheres criando netos ou filhos de vizinhos porque os pais das crianças morreram em decorrência da Aids.
Como foi crescer na África do Sul, durante o apartheid, sendo negra e mulher?
Ser considerada uma cidadã incompleta e menos ser humano do que as outras pessoas é muito duro. Cresci vendo placas espalhadas por diversos lugares onde os negros não podiam entrar ou onde havia espaços reservados para os brancos. A exclusão é dolorosa. Eu tinha 6 anos e meio quando, junto com a minha irmã, fui estudar num país vizinho. Meus pais eram privilegiados porque tiveram a opção de nos mandar para fora e evitar que permanecêssemos num sistema educacional excludente e que privilegiava os brancos. Sei que tive sorte, mas naquela idade eu achava que não era um privilégio ficar tão longe dos meus pais e ter a oportunidade de vê-los apenas três vezes ao ano. Por ser mulher, o desafio era maior. E ainda é hoje em dia.
Inclusive na sua família?
Sim. O meu avô dava muito mais importância para o meu irmão do que para mim e para as outras netas. Isso pode parecer irrelevante hoje, mas quando eu era pequena não era. O que acontecia na minha casa era comum em toda a comunidade. Nas escolas, os meninos eram encorajados a agir com franqueza e ser comunicativos. Mas se as meninas tivessem as mesmas atitudes eram consideradas mal-educadas. Certas características que eram vistas como positivas nos meninos eram questionáveis nas meninas.
Ser filha de Desmond Tutu foi um desafio?
Durante a minha infância, meu pai não era famoso mundialmente. Cresci sendo a filha de um sacerdote e rodeada por pessoas que tinham uma série de expectativas sobre como eu deveria me comportar e que tipo de pessoa eu deveria ser. Elas cobravam, por exemplo, que eu me engajasse em grupos religiosos. Quando a minha família se mudou para a Inglaterra e entrei numa escola de lá, muitos alunos achavam que eu deveria me tornar líder de alguma organização cristã. Mas eu não tinha o menor interesse nisso. Ser filha de Desmond Tutu, por outro lado, também me trouxe uma série de oportunidades – como a de estudar fora da África do Sul e conhecer pessoas que pensavam e agiam de maneiras diferentes.
Quanto se perde quando uma pessoa é julgada pela cor da pele ou pelo sexo?
A perda não é apenas individual, é coletiva. Quem é oprimido perde porque suas oportunidades ficam limitadas. Mas a sociedade também perde porque desperdiça o verdadeiro potencial dessas pessoas. Cresci com pessoas inteligentíssimas na África do Sul que tiveram suas possibilidades cerceadas por causa do apartheid. Quem essas pessoas seriam hoje se tivessem tido as mesmas oportunidades que as crianças brancas? O que elas teriam dado de retorno para a África do Sul e para o mundo?
Como o preconceito e a discriminação são construídos socialmente?
Todo mundo cresce aprendendo que negros não são boas pessoas. Os estereótipos são reforçados diariamente pela mídia e nas conversas que temos em casa ou fora dela. Recentemente, um amigo do meu filho suspeitou que ele tivesse roubado um cartão de crédito só porque é negro. Onde esse amigo aprendeu que negros são assaltantes? Mensagens de que a maioria dos negros é criminosa e de que a maioria dos criminosos é negra estão todos os dias na mídia. Isso acaba gerando insegurança de ambos os lados.
Qual foi a sua experiência mais forte com relação ao racismo?
Costumo dizer que a mais forte é sempre a mais recente. E foi justamente esse episódio envolvendo o meu filho, de 13 anos. Ele chegou em casa arrasado. É doloroso perceber que não podemos proteger nossos filhos desse tipo de experiência. Conversei com a mãe do garoto porque conheço a família e sabia que ela não estava educando o menino daquela maneira. Ela colocou os dois frente a frente para fazer as pazes e o filho dela pediu desculpas para o meu filho e para mim. Por alguma razão, o ser humano tem a necessidade de se sentir melhor do que os outros e de projetar os seus demônios.
Nenhum comentário:
Postar um comentário