Ecos da resistência negra na Serra da Barriga, em Alagoas, terra de Zumbi dos Palmares, correm nas veias de Vanda Menezes, militante negra e feminista há 30 anos. Psicóloga e perita criminal da Polícia Civil de Alagoas, Vanda já foi Secretária de Estado da Mulher e, hoje, integra a Rede Mulher e Democracia.
A gênese de sua militância no movimento negro remonta a um episódio de sua juventude, aos 18 anos, quando seu amigo Marcelino Dantas foi impedido de entrar em um clube privado na capital alagoana por ser negro. Em 79, Vanda participou da fundação da Associação Cultural Zumbi, a primeira entidade a discutir a problemática racial em Alagoas.
No começo da década de 80, deu-se sua inserção no movimento feminista. Depois de duas décadas de militância em defesa dos direitos das mulheres, Vanda assumiu a Secretaria Especializada da Mulher do Estado de Alagoas, em 2002. Nas eleições municipais de 2008, concorreu ao cargo de Vice-Prefeita de Maceió pelo PDT, integrando a coligação “Maceió Mais Humana”.
1. Nesse Dia da Consciência Negra, o que podemos comemorar?
Há exatamente 30 anos, lideranças do movimento negro alagoano e de diversos cantos do país subiram a Serra da Barriga para a retomada simbólica do nosso Patrimônio Histórico. Rememoro Abdias Nascimento, Leila González, Abigail Páscoa, Januário Garcia, Vovô, Apolônio, Inazete Pereira, Telma Chase, Zumbi, Carlão, Mãe Hilda, Zezito Araújo, Marcelino Dantas, Edialeda, Helena Theodoro, Olympio Serra, Carlos Moura, Ordep Serra, entre tantos outros que lá estiveram. A partir daí, tombamos, desapropriamos, tornamos [a Serra da Barriga] Patrimônio Nacional e Zumbi, herói nacional. Hoje, somos maioria da população, temos a lei das cotas em quase todas as universidades públicas, temos organismos estaduais e nacionais para tratar especificamente da questão étnico/racial. Nesse dia, além de reverenciarmos Zumbi, Dandara e tod@s @s quilombolas que deram suas vidas em prol da liberdade que até hoje, novembro de 2009, século XXI, terceiro milênio, ainda não temos. Refletimos e debatemos porque todas essas conquistas são frutos da nossa luta cotidiana. E apesar de toda nossa luta, o tráfico e a Polícia continuam matando nossos jovens, mulheres negras estão nos trabalhos mais precarizados, nossas crianças morrendo de diarreia por falta de saneamento básico. Continuamos no meio da pista.
2. Como você avalia as conquistas do movimento negro e, mais especificamente, do movimento de mulheres negras, nos últimos vinte anos no Brasil?
Para o movimento negro, a conquista foi ter levado o país a refletir sobre o racismo, e questionar o mito da democracia racial brasileira. Ter transformado o dia 20 de Novembro em uma data cívica para debater essa questão, a questão do preconceito, da discriminação racial e do racismo. Para o movimento de mulheres negras, [a conquista] foi constituir-se em um segmento organizado da sociedade civil brasileira e levar o movimento de mulheres e o movimento feminista a considerar os efeitos do racismo e da discriminação racial sobre a agenda de direitos das mulheres brasileiras – na saúde, na educação, no trabalho, nos meios de comunicação, entre outros assuntos.
Trinta anos atrás não contávamos com a gama de indicadores sociais, com o recorte racial para demonstrar o tamanho do fosso entre a qualidade de vida das pessoas negras e brancas, das mulheres negras e das mulheres brancas. Nós lutamos por esses dados, os dados que dão visibilidade ao resultado do racismo, e isso é algo que a sociedade brasileira dispõe em farta quantidade. E o desafio é dar conta desse fosso, dessa imensa desigualdade.
3. De que formas o racismo à brasileira se mostra mais efetivo e difícil de ser combatido?
O racismo no Brasil se mostra mais difícil de combater porque existe uma incrível resistência de assumi-lo como um problema social, moral e ético contra as pessoas que descendem daquelas que tiveram a experiência da escravidão. Em minha opinião, esse é um dos mais importantes pontos de partida para compreender a resistência do racismo no Brasil. A população negra – escrava e liberta – foi intencionalmente excluída do projeto de nação que a República desenhou para o país com o fim das relações escravistas de produção e organização social. É por isso, também, que o 20 de novembro, relembrando a saga do Quilombo dos Palmares, é tão importante para a organização social e política da população negra.
Palmares e outros quilombos são exemplos concretos de resistência criados por homens e mulheres escravizados, contra um regime que reduzia a sua condição humana em larga escala. Nos dias de hoje, apontar o racismo, os atos discriminatórios de base racial na vida das pessoas negras é, também, uma forma de resistência às situações que desumanizam a população negra.
Quem sofre os atos de preconceito e discriminação pelo fato de ser negro não compactua com a ideia de, aqui, no Brasil, o racismo ser dissimulado.
4. Como é ser uma mulher negra no Brasil hoje, em comparação ao início de sua trajetória como militante feminista e negra?
Veja bem, o racismo continua vigente em nosso país. Muda de faceta de acordo com a conjuntura, mas continua cruel. Como há 30 anos, continuo tendo que provar o que sou porque no nosso país não basta quem sou e, sim, o que sou. E aí já viu...
Pior é que não sou regra, sou exceção. E a maioria dos brasileiros não acredita em exceção.
5. Quanto já se avançou no diálogo entre o movimento feminista e o movimento negro? Quais são as dificuldades e os obstáculos que permanecem?
Você quer dizer movimento de mulheres negras? Esse é um diálogo em construção. Como disse anteriormente, nossa organização enquanto movimento de mulheres negras conseguiu inserir a questão racial na agenda feminista e debater como o racismo define a condição de vida e de morte da nossa população. Toda construção tem dificuldades e obstáculos. Foram muitos anos de casa grande e senzala. No entanto, temos avançado muito, porque, no feminismo, igualdade e equidade são condições essenciais. Por isso, sou feminista com especificidade: meu feminismo é negro.
6. Como você avalia as políticas públicas do Governo Lula voltadas à promoção dos direitos das mulheres e do enfrentamento ao racismo?
Avalio como boas. Existem dificuldades e resistências por serem políticas nunca antes sequer discutidas dentro dos governos. Mas avalio que, se governo e sociedade civil organizada, de maneira plural, trabalharem de forma conjunta – o governo executando as políticas e sem receio de que a sociedade civil monitore, avalie e sugira –, teremos políticas públicas eficazes para nossa população.
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