Boaventura de Sousa Santos
Cento e oitenta quatro anos depois, o Brasil parece finalmente estar a passar do período da pós-independência para o período pós-colonial. A entrada neste último período dá-se pela constatação, discutida na esfera pública, de que o colonialismo, longe de ter terminado com a independência, continuou sob outras formas mas sempre em coerência com o seu princípio matricial: o racismo como uma forma de hierarquia social não intencional porque assente na desigualdade natural das raças. Esta constatação pública é o primeiro passo para se iniciar a viragem descolonial, mas esta só ocorrerá se o racismo for confrontado por uma vontade política desracializante firme e sustentável. A construção dessa vontade política é um processo complexo mas tem a seu favor, não só um punhado de convenções internacionais, como também e, sobretudo, a força política dos movimentos sociais protagonizados pelas vítimas inconformadas da discriminação racial. A viragem descolonial para ser eficaz, tem de ocorrer no Estado e na sociedade, no espaço público e no espaço privado, no trabalho e no lazer, na educação e na saúde. É, pois, um processo civilizatório, tão complexo quanto irreversível.
A modernidade ocidental foi na sua origem, simultaneamente um processo europeu, dotado de mecanismos poderosos como a liberdade, igualdade, secularização, inovação científica, direito internacional e progresso, e um processo extra-europeu, dotado de mecanismos não menos poderosos como o colonialismo, racismo, genocídio, escravatura, destruição cultural, impunidade, não-ética da guerra. Um não existiria sem o outro. Por terem sido concedidas aos descendentes dos colonos europeus e não aos povos originários ou aos para aqui trazidos pela escravatura (com excepção do Haiti), as independências latino americanas legitimaram o novo poder por via dos mecanismos do processo europeu para poderem continuar a exercê-lo por via dos mecanismos do processo extra europeu. Assim se naturalizou um sistema de poder que, sem contradição aparente, afirma a liberdade e a igualdade e pratica a opressão e a desigualdade. Um sistema até hoje em vigor, ou seja, até à entrada no período pós-colonial.
Assentes neste sistema de poder, os ideais republicanos da igualdade constituem uma hipocrisia sistémica. Só quem pertence à raça dominante tem o direito (e a arrogância) de dizer que a raça não existe ou que a identidade étnica é uma invenção. Uma democracia hipócrita não chega sequer a ter o mérito da hipocrisia democratizada. O máximo de consciência possível desta democracia hipócrita é diluir a discriminação racial na discriminação social. Admite que os negros e os indígenas são discriminados porque são pobres para não ter de admitir que eles são pobres porque são negros e indígenas. É, pois, uma democracia de muito baixa intensidade. A sua crise final começa no momento em que as vítimas da discriminação se organizam para lutar contra a ideologia que os declara ausentes e as práticas que os oprimem enquanto presenças desvalorizadas. São lutas por uma democracia de alta intensidade e por um republicanismo robusto. Distinguem-se dos seus antecessores por duas razões. Em primeiro lugar, assentam na luta simultânea pela igualdade e pelo reconhecimento da diferença. Reivindicam o direito de ser iguais quando a diferença os inferioriza e o direito de ser diferentes quando a igualdade os descaracteriza. Em segundo lugar, apostam em soluções institucionais dentro e fora do Estado para que o reconhecimento dos dois princípios seja efectivo. Daí a luta pelos projectos de lei de Cotas e do Estatuto da Igualdade Racial. O alto valor democrático destes projectos de lei reside na ideia de que o reconhecimento da existência do racismo só é legítimo quando visa a eliminação do racismo. É o único antídoto eficaz contra os que têm o poder de desconhecer ou negar o racismo para o continuarem a praticar impunemente.
Estes projectos de lei, se aprovados e aplicados, darão ao Brasil uma nova autoridade moral e um novo protagonismo político no plano internacional. Mas será, no plano interno, que os seus efeitos positivos mais se farão sentir: a construção de uma coesão social sem a enorme sombra do silêncio dos excluídos. Para que tal ocorra, os movimentos sociais não podem confiar demasiado na vontade dos governantes dado que eles são produtos do sistema de poder que naturalizou a discriminação racial. Para que eles sintam a vontade de se descolonizarem é necessário pressioná-los e mostrar-lhes que o seu futuro colonial tem os dias contados. Esta pressão não pode ser obra exclusiva do movimento negro e do movimento indígena. É necessário que o MST, os movimentos de direitos humanos, sindicais, feministas, ecológicos, etc., se juntem à luta no entendimento de que, no momento presente, a luta pelas cotas e pela igualdade racial condensa, de modo privilegiado, as contradições de que nascem todas as outras lutas em que estão envolvidos.
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