O Estado sempre expressa e representa a dominação política-ideológica de uma classe sobre outras. Na sociedade brasileira, representa os interesses da burguesia, assegurando a manutenção e reprodução do sistema econômico capitalista, a hegemonia do capital.
Gramsci compreende o Estado como incluindo a sociedade civil, definindo-o assim:
“A noção geral de Estado inclui elementos que precisam ser relacionados à noção de sociedade civil: o Estado = sociedade política + sociedade civil, em outras palavras, hegemonia coberta com a armadura da coerção”.
Enquanto em Marx o momento da sociedade civil coincide com a base material (contraposta à superestrutura onde estão as ideologias e as instituições), para Gramsci o momento da sociedade civil é superestrutural:
Nas superestruturas da sociedade são identificados dois grandes níveis – o que devemos chamar de nível da “sociedade civil”, quer dizer o conjunto dos organismos comumente chamados “privados”, como igrejas, escolas, sindicatos, associações etc. O outro é o da “sociedade política” ou do Estado: aparelho coercitivo que assegura a conformidade das massas populares ao tipo de produção ou de economia em um momento determinado. Obviamente essa não é uma distinção orgânica, mas sim metódica. Esses dois níveis correspondem, de um lado, à função de “hegemonia” que grupos dominantes exercem sobre a sociedade e, de outro, àquela de “dominação direta” ou de comando que se exprime no Estado e no governo “jurídico”.[1]
Em Gramsci, a “sociedade civil” é o lócus fundamental de formação e difusão da hegemonia. È o centro nevrálgico onde as classes lutam para conquistar direção política, capacitando-se e acumulando forças para a conquista e o exercício do poder.
Na sociedade civil surgem e se desenvolvem os conflitos econômicos, sociais, culturais, religiosos e ideológicos. É onde formam-se as demandas dirigidas ao sistema político, que precisa respondê-las. Os sujeitos desses conflitos são as classes sociais através de várias formas de associação que os indivíduos fazem entre si, manifestando seus interesses por meio de organizações e movimentos diversos. A incapacidade das instituições de dar respostas e a impossibilidade do Estado de atendê-las – por limitações econômico-financeiras ou de ordem político-ideológicas, de preservação dos interesses das classes dominantes – pode conduzir à crise de governabilidade e a continuidade desta gerar uma crise de legitimidade. A crise do Estado é resultante de uma crise de hegemonia, uma quebra na aptidão das classes dominantes de manter a direção política.
As ideologias disseminadas se tornam “partidos”, entram em conflito e em confrontação até que pelo menos uma delas, ou pelo menos uma única combinação delas, tende a prevalecer, a se impor, se propagando por toda a sociedade civil.[2]
É à rede estratégica da sociedade civil que se atribui a manutenção da hegemonia capitalista em uma democracia política, em que as instituições estatais não excluem ou reprimem diretamente as massas. Contudo, as condições normais de subordinação ideológica das massas – a rotina diária da democracia burguesa – são elas próprias constituídas por uma força silenciosa e ausente que lhes dá o seu valor: o monopólio da violência legitimada pelo Estado. Desprovido dessa força, o sistema de controle cultural seria instantaneamente fragilizado, caso os limites das ações possíveis contra ele desaparecessem.
“Gramsci atribuía à cultura, à superestrutura, uma dimensão política que foi subestimada pelo marxismo ortodoxo – muito preso ao determinismo econômico. Compreendeu e valorizou a cultura e seu papel não só na transformação da sociedade, mas também na conservação. Essa valorização é um dos momentos constitutivos do seu conceito de hegemonia. Em Gramsci, hegemonia não é apenas direção política, mas também cultural, isto é, obtenção de convencimento / consenso para um universo de valores, de normas morais, de regras de conduta”[3].
Em uma democracia burguesa, o Estado constitui apenas a trincheira avançada da sociedade civil hegemonizada pela ideologia dominante, que pode resistir a sua destruição. A sociedade civil se torna o núcleo central ou a casamata da qual o Estado é apenas a superfície externa.
A tarefa principal dos militantes socialistas – na realidade política atual – não é a de combater um Estado armado, mas converter ideologicamente o proletariado para libertá-lo das mistificações capitalistas – afirmar a identidade de classe, a ideologia socialista, desenvolvendo o acúmulo de poder a partir da formação de uma consciência crítica. No curso da “Guerra de Posição”, devemos conquistar espaços políticos orgânicos na sociedade civil e criar novos organismos com o avançar da luta política.
Assim há necessidade de “absorver” as forças sociais aliadas, estabelecendo compromissos com a finalidade de criar um bloco histórico político-econômico homogêneo sem contradições internas, capaz de desenvolver em um segundo momento a “Guerra de Movimento”, efetivando a alteração real do poder político e da ideologia dominante. Com isto, Gramsci contrapõe a “hegemonia do proletariado” à fórmula da “ditadura do proletariado”, refletindo uma ruptura importante com a doutrina revolucionária russa.
Historicamente, o desenvolvimento de qualquer crise revolucionária necessariamente desloca o elemento dominante, no seio da estrutura do poder burguês, da ideologia para a violência. A coerção torna-se ao mesmo tempo determinante e dominante em uma crise limite. O poder capitalista pode, neste sentido, ser visto como um sistema topológico com um centro “móvel”: em toda crise, assiste-se a um deslocamento objetivo e o capital, deixando de lado seus aparelhos representativos, se reconcentra em torno dos seus aparelhos repressivos.
Uma Perspectiva Negra
Ao não reconhecer o papel do trabalho negro como elemento estruturador e definidor do caráter da sociedade gestada no Brasil, a esquerda tradicional se incapacitou para entender os desdobramentos institucionais, econômicos, sociais e ideológicos existentes no país.
A questão negra é um elemento central na interpretação da realidade brasileira. A explicação do processo de acumulação de capital no Brasil passa, inevitavelmente, por uma análise histórica da participação preponderante do povo negro como força produtiva ao longo do desenvolvimento do modo de produção escravista, na construção das riquezas do país.
“O drama humano intrínseco à Abolição condenou a massa dos ex-escravos e dos libertos à própria sorte, como se fossem um simples bagaço do antigo sistema de produção. O advir da República, vinculada à desagregação da produção escravista e da ordem social correspondente, não assimilava o negro e o liberto como categorias sociais. Tratava-se de um novo regime das elites, pelas elites, para as elites”.[4]
Foi realizada uma “revolução passiva”, segundo o conceito desenvolvido por Gramsci. A classe dominante, reprimindo e excluindo os “de baixo”, empreende processos de renovação “pelo alto”, autoritários ou ditatoriais, impedindo com isto, que eles sejam protagonistas nos processos de transformação. O primeiro censo do período republicano revela que, de 14 milhões de habitantes, 8 milhões eram afrodescendentes.
Como trabalhador assalariado, a sociedade de classes incorpora o negro ao sistema de trabalho, à estrutura social do modo de produção capitalista, integrando-o ao proletariado. Nessa condição o negro pode ser duplamente revolucionário – como negro e como proletário. Se não conta com razões para defender a ordem existente, há muitos motivos para negá-la, destruí-la e construir uma ordem nova.[5]
Afirmamos o caráter estratégico da organização do povo negro para engendrar uma sociedade sem dominação de raça, de gênero e sem dominação de classe. Estas duas polaridades – a classe e a raça combinadas – podem constituir-se em forças centrífugas à ordem existente. A raça é o fator que em um contexto de confrontação poderá levar mais longe, em extensão e profundidade, o padrão de democracia que corresponderá às exigências da situação brasileira. O povo negro deve emancipar-se coletivamente, concebendo a interação de sua condição racial com a condição de força produtiva, construindo objetivamente uma via para transformar o país.
Aprendemos com a teoria gramsciana que nenhum movimento real adquire repentinamente consciência de sua totalidade, mas somente por meio de experiências sucessivas, quando toma consciência pelos fatos, de que nada do que é, é “natural”, mas que tudo existe porque existem certas condições que lhe dão materialidade. É com a consciência da totalidade que o movimento se aperfeiçoa, perde as características de “simbiose”, se torna verdadeiramente independente, no sentido de que para ter determinadas conseqüências cria as premissas necessárias, empenhando todas as suas forças.
Em consonância com a interpretação da realidade brasileira hoje, o patamar de nossa luta situa-se na radicalização da democracia, procurando expandi-la para além dos limites da institucionalidade vigente. A luta pela hegemonia deve articular, interligar a busca pela concretização da “cidadania social” à política, colocando a generalização da cidadania negra como o objetivo central da luta democrática.
Este é o nosso desafio: a construção de um projeto contra-hegemônico à ideologia, à lógica, ao sistema econômico capitalista. O acumulo de forças na sociedade civil, tendo como norte a emancipação social e política do povo negro e a construção de uma sociedade socialista, multiétnica no Brasil.
Valdisio Fernandes, Coordenador Geral do Instituto Búzios.
[1] GRAMSCI, Antonio. “Gramsci – Poder, Política, e Partido”, São Paulo, Editora Brasiliense, 1990.
[2] Idem.
[3] COUTINHO, Carlos Nelson. Entrevista à Folha de São Paulo / caderno “Mais!”, 21/11/1999.
[4] FERNANDES, Florestan. “Significado do Protesto Negro”, São Paulo, Cortez Editora / Autores Associados, 1989.
[5] Idem.
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