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quarta-feira, 5 de janeiro de 2011

Mobilizando a Ancestralidade Afro-Brasileira para a Transformação das Relações Sociais e o Desenvolvimento Global


Introdução

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Eu parto do princípio que o racismo se espalha, é reproduzido, e afeta diferentes grupos de maneiras específicas em diferentes contextos, mas o fato do preconceito e racismo surgir de um sistema de desenvolvimento econômico, social, e cultural que é interligado ao nível global, é fundamental entender a relação entre os processos no nível local com os aqueles no nível global para desvendar e desconstruir a reprodução do poder e da desigualdade.

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Porque o foco na ancestralidade Africana, Afro-diasporica, e Afro-Brasiliera? Vou argumentar que a ancestralidade em si, com seu conteúdo cultural, como prática, como memória, como fonte de sabedoria, filosofia, e identidade, oferece uma maneira de não somente resgatar ou construir uma identidade negra histórica. A ancestralidade Afro-Brasiliera também oferece uma perspectiva crítica sobre a história e as relações da desigualdade. Essa perspectiva surge tanto do legado ancestral—da cosmovisão Africana—como da experiência histórica vivida ao longo das gerações. Esse olhar crítico oferece a possibilidade de um outro entendimento do que é ser cidadão, do que é ser Brasileiro, que vem direto da experiência negra. A ancestralidade Afro- Brasileira também tem um conteúdo cultural que revela possibilidades para transformação social num mundo que, no presente, está precisando conceitos de solidariedade, coletividade, e sistemas alternativos para construir a igualdade e um mundo melhor.

Debates Sobre a Diferença Brasileira na Questão Racial

Nos debates sobre a questão racial que permeiam a mídia, em particular a questão de cotas, é sempre citado que o Brasil é diferenciado na sua formação racial. Especificamente, essa diferença que é apontada é a miscigenação, que significa mistura biológica entre “raças”, mistura cultural, ou uma combinação das duas. Sempre ouvimos que aqui, somos um país miscigenado, algo a ser valorizado. De fato, a mistura de pessoas e culturas diferentes ao longo do tempo é algo real na sociedade Brasileira. Mas os argumentos que caracterizam a miscigenação simplesmente como fator positivo tem a tendência de fazer três coisas.

O primeiro é apontar a miscigenação como fonte da falta do racismo como fator que influencia as relações sociais. Por muito tempo existe um debate sobre qual fator seja o principal víeis da desigualdade no Brasil: a questão de raça ou a questão de classe. Construir essa divisão e propor que teríamos que decidir entre um ou o outro mascára as relações entre os dois, e a relação destes com as questãos de gênero, spiritualidade ou religiosidade, cultura, economia, e sexualidade.

Dentro do processo da colonização da África, Ásia, e as Américas pelos países Europeus e dentro o desenvolvimento capitalista, existiu um sistema de representações construídas não somente no plano da economia com as questões culturais surgindo dessa base. Esse sistema e processo envolveu vários elementos que se entrelaçam ou se cruzam onde às relações são constituídas mutuamente por fatores como raça, etnia, spiritualidade, gênero, e sexualidade.

Essas diferenças entre povos ou grupos humanos, entre homens e mulheres, entre Africanos e Europeus, quando considerado em si, não contenham significados ou valores. Foi a relação do poder dentro do colonialismo que transformou essas diferenças em valores, onde diversas culturas e formas de viver foram avaliadas a base de uma visão de civilização e cultura especifica (da Europa ocidental). Dentro de um sistema que estabeleceu hierarquias entre os povos (usado para justificar a escravização de povos indígenas e negros Africanos e o processo dito “civilizatório” dos países Europeus), certos atributos foram ligados as “raças” ou etnias diferentes dentro de um sistema de desenvolvimento colonial e depois capitalista. Então, para promover esse processo civilizatório que sai de um lugar e experiência histórica específica (aquela da Europa ocidental) como o modelo universal para todos, foi necessário não somente subjugar (ou inserir) povos economicamente dentro de um sistema de classes, mas também foi essencial desvalorizar, reprimir, e dominar as outras formas de viver e ser, de cultura, espiritualidade, sabedoria, e das cosmovisões diversas dos povos que habitem o planeta. Os modos de organizar a vida, de entender as relações humanas, do homem e mulher com a natureza, e as relações econômicas e comunitárias dos povos Africanos, Afro-descendentes, e indígenas foram subjugados e incorporados numa hierarquia de significados e valores onde a pele branca e a cultura oriunda da Europa Occidental constituíram o topo da pirâmide no imaginário colonial. Essa hierarquia passou a determinar privilégios e a distribuição de bens materiais onde fatores como a cor da pele ou aparência física (raça e etnia) formaram uma parte integral do sistema de classificação.

Para resumir, existe uma articulação complexa entre vários fatores—classe, gênero, raça, sexualidade, e espiritualidade—na constituição desigual do desenvolvimento e das sociedades da América Latina, e portanto, do Brasil. Argumentar que a questão seja classe ou raça é na maioria dos casos errôneos porque os dois fazem parte do legado do colonialismo onde significados e valores construídos em cima das diferenças como a cor da pele, a cultura, a espiritualidade, e gênero visaram uma distribuição de privilégios, cidadania, e acesso aos bens materiais que favoreciam (e ainda favorece) uns acima de outros. Um debate frutífero seria em torno do como a raça afeta a experiência de ser Brasileiro, já que o Brasil faz parte de um sistema internacional de desenvolvimento capitalista onde o racismo foi integral. É nesse ponto que eu focalizo agora.

A segunda coisa presente nos argumentos que defendem o Brasil como país não racista é o divórcio do Brasil de uma conexão com processos históricos de desenvolvimento global. A especificidade histórica e cultural do país é construído como algo isolado, onde o Brasil se torna num espaço próprio, sem interconexão com as idéias, os processos, e as relações de poder que constituem a construção das hierarquias que ao longo do tempo sustentarem e ainda sustentam o sistema de desenvolvimento capitalista que gera desigualdades. Nos argumentos que enfatizam a especificidade do Brasil sem dar conta dessas interligações, o Brasil parece ser ausente das bases de negação de espiritualidade, cultura, e humanidade que influenciou os processos de colonização e desenvolvimento econômico em toda a América Latina e o resto do mundo. Para entendermos as especificidades da relação entre o desenvolvimento e o racismo no Brasil, seria necessário inserir o Brasil como uma estado-nação de volta nesse sistema internacional que historicamente se baseou nas diferenças raciais, culturais, e espirituais para distribuir direitos e benefícios desigualmente em favor de uma pequena parcela de gente, seja ela elite estadunidense ou a elite brasileira.

A terceira coisa feita na supervalorização da miscigenação é uma ligação, algumas vezes implícita e outras explícita, entre miscigenação e igualdade racial. Existe miscigenação, portanto existe relações amigáveis entre brancos e negros, e portanto, a igualdade racial. Nessas colocações, miscigenação vira algo estático em vez de um processo envolvendo seres humanos inseridos em hierarquias e posições diferentes na sociedade baseados em fatores como raça, etnia, gênero, e classe. Nessas colocações, a miscigenação perde a sua característica de processo complexo vivida hoje, às vezes de maneira conflituosa e às vezes de maneira mais tranqüila, mas sempre dentro de um contexto histórico e social do poder que influencia seus significados, desdobramentos, e efeitos. Neste caso, a tendência á igualdade das relações raciais no Brasil se baseiam numa miscigenação estática, onde suas conseqüências são tomadas por certo em vez de examinadas nas suas complexidades.

Se observarmos com cuidado, nós vemos como a cultura Africana e Afro-Brasileira e as línguas Africanas e indígenas permeiam a sociedade Brasileira. Sabemos que o resultado do processo de desenvolvimento não foi à completa eliminação dessas culturas e desses povos. Então a questão se direciona a avaliar qual é a presença da cultura Afro-Brasileira na sociedade.

Aqui eu volto para a questão da miscigenação, da mistura. Por muito tempo, a existência de uma mistura racial e cultural muito grande ao lado de desigualdades raciais profundas foi tratado como um paradoxo.

“Puxa, se tivemos tanta mistura racial, porque que não temos mais igualdade racial?”

Hoje vemos, por exemplo, muitas pessoas (de antropólogos e sociólogos a jornalistas) defenderem essa mistura como via para a democracia racial no futuro. Muitos dizem que, se não alcançamos na realidade de hoje a democracia racial que sempre queríamos, temos que preservar a possibilidade de ter ela no futuro. Para esses, isso envolve ações que defendem a mistura a frente de movimentos que querem que Afro-descendentes valorizem e assumem uma identidade negra. Supostamente, uma valorização desta identidade e as reivindicações feitas para melhorar a condição do povo afro-descendente ameaça a Brasilidade. Nesse argumento, a maior ameaça a uma futura democracia racial é falar sobre desigualdade racial e uma identidade negra positiva e explícita.

O que esse argumento não pergunta é, “se temos tanta mistura racial, tanta miscigenação, mas ainda temos tanto racismo e desigualdade racial, será que a miscigenação no Brasil não seja um sistema específico de dominação, som suas maneiras próprias de reproduzir a hierarquia e o poder?” Uma segunda pergunta seria, que tipo de miscigenação e Brasilidade é essa onde o referencial histórico na escola para jovens começa com a escravidão e o navio negreiro? Que tipo de miscigenação e Brasilidade é essa onde a população usa um vocabulário ambíguo para evitar o uso da palavra “negro/a” ou a associação das pessoas com todos os significados negativos historicamente impregnados nessa palavra?

Em vez de tentar proteger a miscigenação a qualquer custo, precisamos examinar como as relações desiguais e hierárquicas foram reproduzidas dentro de um sistema que não visa à separação de raças como na América do Norte, mas uma suposta tendência à integração e a cordialidade. Então o principal foco não deveria ser: “somos diferentes dos Estados Unidos com nossa mistura, então a questão racial não é significante.” A questão teria que ser: temos uma formação racial e cultural própria, mas essa formação não se exclui de processes históricos de colonização e desenvolvimento global onde raça e cultura formam as principais diferenças usadas para estabelecer privilégios e promover certos valores e formas de organizar a vida e a economia acima de outros. Por causa disso, temos que reconhecer de que maneira a miscigenação também produziu, e continua produzindo, hierarquias e representações que promovem uma inclusão desigual do negro na sociedade.

Apesar da miscigenação e as relações inter-raciais no Brasil prover muitas instâncias de relações positivas, construtivas, solidárias, e íntimas entre as pessoas, ao mesmo tempo, a visibilidade e inclusão de Afro-Brasileiros nas principais instituições do poder público e econômico é inexistente, para não mencionar a falta de inclusão das práticas e valores oriundos das culturas Áfricanas e Afro-Brasileiras que fazem parte da formação do país. A miscigenação como base da ideologia da democracia racial promoveu uma inclusão e visibilidade simbólica do negro e da sua cultura, onde as concepções da sabedoria, de comunidade, de cultura, e os valores que esses contém, permanecem escassas ou excluídas das principais instituições políticas, econômicas, e educacionais no Brasil. Ao mesmo tempo que esse valorização simbólica proveu algumas oportunidades para um avanço socio-económico, ela não passou a desconstruir as relações de poder, as representações, e as práticas que reproduzem o racismo.

Para resumir, apesar das especificidades históricas do desenvolvimento das relações sociais e raciais no Brasil, elas estão interligadas ao longo do tempo com as idéias, relações de poder, e processos que justificaram, organizaram, e influenciaram o desenvolvimento global do sistema capitalista que incluiu a escravização do povo Africano e seus descendentes, o embranqueamento, a valorização da religiosidade cristã como reflexo de civilização e a deslegitimação e desvalorização da religiosidade Africana como sistema de vida, e a caracterização das práticas que surgem em comunidades negras, indígenas, e mestiças como a

Ausência de cultura ou “cultura popular,” com todos os significados pejorativos que excluem essas práticas daquelas valorizadas como proponentes do progresso e da civilização moderna.

A Questão da Diversidade e o Desenvolvimento Global

Quando pensamos a questão da diversidade, temos que pensar ambos na maneira como o sistema exclui e na maneira que ela inclui. Hoje percebemos que todo mundo está interessado em “diversidade” e “inclusão,” inclusive o governo e as corporações do setor privado alem dos movimentos sociais e anti-racistas. Então, quando falamos de diversidade racial e étnica e a inclusão do negro e de sua cultura, qual é o conteúdo dessa diversidade e que tipo de inclusão estamos pensando? Como seria o processo de construir a inclusão e de tratar da diversidade de maneira substantiva?

Essas questões sobre a diversidade e inclusão que enfrentamos nessa conjuntura da discussão das relações raciais e políticas para promover a igualdade no Brasil estão diretamente ligadas a um processo transnacional que vem se desenvolvendo pelo menos nos últimos vinte anos. O mundo foi sempre diverso, mas mais e mais, com a globalização, a diversidade está mais visível e presente, por exemplo nos meios de comunicação, na música, no movimento global de produtos e pessoas. Isso traz uma serie de maneiras de lidar com a questão da globalização capitalista que surgem das perspectivas e experiências daqueles povos e das culturas que ao longo do tempo foram subalternizadas, definidas como “atrasadas” e alvos necessários da modernização e industrialização. Mas sempre houve resistência a imposição desse modelo dominante de desenvolvimento ao mesmo tempo que as instituições que desempenham e administram os desenvolvimento econômico global, como o Banco Mundial, o FMI, o Banco Inter-Americano do Desenvolvimento, procuraram maneiras de expandir o alcance de seus projetos de desenvolvimento, e conseqüentemente, o mercado capitalista.

Nos anos noventa, essas instituições perceberam que a promoção da inclusão da cultura dos povos de paises “subdesenvolvidos,” como os diversos povos Africanos e Indígenas, dos Indianos, dos Afro-descendentes nas Américas, seria uma maneira de re-estruturar seus discursos e suas instituições. Isso se chama em Inglês “the cultural turn of development” [a mudança do desenvolvimento para um foco na cultura]. A questão se direcionou em pensar como que o projetos poderiam incorporar a cultura como recurso e como elemento principal no sucesso do desenvolvimento. A cultura dos povos “subdesenvolvidos”, e com isso a diversidade e as diferenças culturais, que no passado foram considerados obstáculos para o desenvolvimento capitalista passaram a representar possibilidades.

A inclusão da cultura como recurso e possibilidade fértil para projetos e teorias de

Desenvolvimento não foi proposta como uma maneira de realmente mudar ou revolucionar o sistema. A cultura passou a ser mobilizada como uma maneira de incluir povos diversos e “diferentes” dentro do sistema capitalista via a promoção da cultura ou da adaptação de projetos de desenvolvimento para os diversos contextos culturais onde seriam implementados. A idéia não foi analisar o que essas culturas oferecem em termos de idéias e práticas alternativas as práticas dominantes de desenvolvimento, e portanto um direcionamento para um desenvolvimento e uma globalização mais igual (por exemplo, de diferentes modelos de organizar a vida, de entender o uso da terra, de definir propriedade e relações comunitárias).

Dois exemplos são a ênfase na cultura como produto e na cultura como instituição que poderiam se adentrar no processo de desenvolvimento. Em termos de produto, o turismo étnico e a preservação do patrimônio seriam exemplos desse processo. A promoção do turismo étnico inclui, por exemplo, uma pessoa indígena de que maneira? Primeiro como objeto do desfruto de populações, geralmente estrangeiras ou das classes poderosas e em muitos casos brancos.

Segundo, o turismo promove a integração econômica desses povos no sistema, tenham que vender e trocar sua cultura como mercadoria ou produto de consumo para se sustentar.

A alternativa seria o que? Promover um sistema onde as práticas culturais e comunitárias, e o modo de viver e organizar a vida seria sustentável sem a necessidade de se vender como mercadoria, ou sem a necessidade de um povo se limitar a isso para sobreviver. Então a incorporação da cultura cria somente algumas opções para esses povos e limita a definição do uso da cultura.

Qual é a conexão dessa incorporação da cultura nas instituições e práticas do desenvolvimento global com a questão racial aqui no Brasil? Tem haver com a idéia do pluriculturalismo e inclusão. O pluriculturalismo como conceito e prática nas políticas públicas de governos em vários paises do mundo está sendo promovido como uma maneira de lidar com a questão da inclusão de grupos historicamente excluídos (culturais, étnicos, raciais). Mas o pluriculturalismo está sendo implementado de uma maneira que visa a inclusão de povos e culturas diferentes dentro de um sistema de estado-nação capitalista. O discurso do pluriculturalismo dá valor a diversidade, mas o tipo de valorização e a forma de cidadania que se segue desse processo varia e nem sempre garante uma inclusão onde os valores e as práticas culturais ou as cosmovisões desses grupos diferentes é tratado de maneira substantiva. O resultado dessa inclusão pluricultural não necessariamente garante uma igualdade mais profunda. Então a gente volta a perguntar: que tipo de inclusão que estamos dizendo quando falamos da inclusão de negros e negras?

No últimos dez a quinze anos na América Latina temos visto a implementação de políticas voltada ao pluriculturalismo e a valorização e inclusão cultural de povos indígenas e afrodescendente.

No Brasil, especificamente, as políticas direcionadas aos remanescentes de quilombos na questão da distribuição de terras são um exemplo. A implementação da Lei 10,639//2003 na educação, que determina a inclusão da história e cultura da África e dos Afro- Brasileiros no currículo e espaço escolar, junto com as políticas de ações afirmativas são outros exemplos da maneira que o governo Brasileiro, depois de anos de mobilização do movimento negro, decidiu lidar com a desigualdade racial. Mas essas políticas direcionadas ao pluriculturalismo começaram a entrar nas visões e nos discursos políticos dos governos da América Latina no momento em que países estavam implementando políticas econômicas neoliberais, principalmente a diminuição do papel do estado pela privatização de instituições e tarefas governamentais e pela decentralização governamental. Então, ao mesmo tempo que o estado começa a garantir mais direitos aos povos historicamente excluídos, o estado passa seu papel na sociedade mais e mais para o setor privado, algo que vem recomendado pelas instituições como o Banco Mundial e a FMI nos seus planejamentos para o desenvolvimento econômico e social de países “em desenvolvimento.”

Dentro desse processo, o efeito na implementação de políticas que visam a expandir os direitos de cidadania de povos indígenas e afro-descendente é variável, em algumas instâncias esse grupos recebem terras, são garantidos seus direitos culturais, e são dados mais autonomia em termos de administrar suas comunidades. Em outros casos, surge um pluriculturalismo neoliberal, onde, para lidar com a pressão das reivindicações feitas por movimentos étnicos, raciais, e culturais pelo reconhecimento de suas culturas e de direitos a cidadania de seus povos, governos promovem o reconhecimento dos direitos culturais dos povos e a promoção de políticas de inclusão como ações afirmativas. Mas muitas vezes, o reconhecimento cultural por parte dos governos (o que vem de cima para baixo) vem sem um questionamento ou mudança significante nas instituições que governam e muitas vezes os direitos ditos “culturais” não são vinculados a uma redistribuição econômica ou dos meios de representação. Governantes perceberam que em alguns casos, o reconhecimento de direitos culturais poderia lidar com algumas demandas desses grupos sem ameaçar o desenvolvimento econômico neoliberal e capitalista e sem necessitar a distribuição de recursos e renda para essas populações. Então garantir uma serie de direitos culturais e de inclusão limitada passa a representar uma maneira de governar uma população diversa.

Um pluriculturalismo crítico visa a tratar mais substancialmente da questão de diversidade onde essa diversidade passa a ser um recurso para trabalhar novas concepções de comunidade e da organização social. O pluriculturalismo crítico não só demanda o reconhecimento de direitos culturais ou a valorização simbólica da cultura. Ela exige a inclusão substantiva do saber e da cultura desses povos como fontes para a transformação das relações sociais. Não é incluir para dizer, “olha, essas pessoas também tem cultura que tem que ser valorizada.” A idéia é incluir de uma maneira onde as cosmovisões e valores passam a ser tratados como filosofias e modos de organizar a sociedade que são idéias ou opções reais e possíveis que temos no presente para construir um desenvolvimento nacional e global mais igual. Em vez de parecer como apetrechos ou adornos para o paradigma dominante do desenvolvimento social e econômico, os conceitos e as práticas dessas comunidades (seja em relação à natureza, o entendimento da sabedoria, o sistema de administrar) seriam a matéria prima para constituir outras opções.

Então, quando pensamos em políticas públicas para a população negra, temos que pensar na maneira que podemos implementar um pluriculturalismo critico, e não neoliberal ou cosmético.

Quando pensamos na Lei 10,639/2003, qual é a maneira que a cultura e história do negro está sendo tratada e oferecida aos estudantes? De onde viria essa cultura e história e como que ela chegaria às salas de aula?

Espaços de Resistência Negra

Já sabemos que dentro do sistema racista e excludente sempre surgiu e existiu ao longo do tempo várias práticas e espaços de resistência onde negros, e em alguns casos brancos aliados, se posicionaram diante de a ordem vigente do poder e das práticas racistas que limitavam a cidadania e a participação do povo Afro-descendente na sociedade. Isso inclui entidades como agremiações carnavalescas, irmandades de cor, terreiros de candomblé, grupos de teatro como o Teatro Experimental do Negro, grupos de capoeira, entidades sociais, a imprensa negra, e vários outros tipos de movimentos. Umas entidades combateram mais explicitamente o racismo e a desigualdade enquanto outros serviram como locais de construção da solidariedade, da formação de identidade e comunidade.

Considero o trabalho do Centro Cultural Orùnmilá em Ribeirão Preto um local de resistência negra que, com suas práticas culturais e discursos e ações políticas, desenvolve uma epistemologia Afro-Brasileira baseado na ancestralidade e que visa a transformação das relações do poder na sociedade. Epistemologia significa o caráter da sabedoria, suas pressuposições e fundamentos que influenciam a maneira de entender e agir no mundo. Com oficinas, apresentações, a participação do Afoxé Omo Orùnmilá no carnaval da cidade, o trabalho do Centro Cultural Orùnmilá une diversas formas de cultura negra como capoeira, percussão, dança Afro, samba de roda, hip-hop, construção de tambores, oralidade, e as religiões de origem Africana. De várias maneiras nessas formas diversas de cultura negra, ou podemos dizer Afro-Brazileira e Afro-diasporica, existe uma epistemologia baseado na oralidade e na sabedoria contida no corpo, ou sabedoria corporal. Quer dizer, o corpo contem sabedoria e história, a memória ancestral e a experiência vivida. São esses o conteúdo dos movimentos e dos sentidos.

A epistemologia se estabelece em cima da cosmovisão e práticas culturais e comunitárias de um povo, de uma sociedade.

A liderança e os membros do Centro Cultural Orùnmilá tratam dessas atividades diversas e seus elementos filosóficos e práticos como historicamente vital na transmissão de cosmovisões, cultura, e sabedoria em comunidades negras e na luta para sobrevivência e cidadania do povo negro. Na filosofia e prática do Orùnmilá, essas expressões e esses aspectos culturais constituem maneiras de forjar e manter a memória coletiva, solidariedade, sabedoria, e a coletividade.

A resistência negra não somente preservou, reconstruiu, e transmitiu os saberes Africanos e Afro-Brasileiros, mas continuamente desenvolveu um sistema de sabedoria e aprendizado.

Embasado em outra epistemologia, outra forma de pedagogia, de entendimento da relação do individuo com a comunidade, da relação do pensamento com o corpo, ou seja, o pensar pelo corpo, não só pelo pensamento, mas pelo sentimento. Cada palavra e cada movimento do corpo é uma vivência e transmissão do legado dos ancestrais. Ao mesmo tempo, o desenvolvimento de certas formas de ação cultural como capoeira e hip-hop, ou a cultivação de solidariedade e comunidade em espaços como os terreiros, revelam a luta para transmitir esses saberes e a memória dentro de um sistema racista e excludente. Essas formas de resistência foram construídas diretamente em relação as condições que os afro-descendentes enfrentaram no contexto da escravidão ou do racismo na pos-abolição. Essa experiência histórica e o desenvolvimento de espaços de resistência juntou-se com o conteúdo e a prática cultural (a oralidade, memória, sabedoria corporal) para, ao longo do tempo, produzir uma epistemologia Afro-Brasileira. Desta maneira, a epistemologia Afro-Brasileira surge diretamente da experiência histórica de ser negro e Brasileiro.

Ancestralidade Africana e Afro-Brasileira como Ação Cultural e Política

A base principal da epistemologia Afro-Brasileira é a ancestralidade que não significa somente um conteúdo que forma a base da identidade negra. A ancestralidade também constitui uma base histórica e filosófica e de ação cultural no presente. A ancestralidade cultiva e se baseia num passado, não como algo romântico, idealizado, ou estático. Se esse fosse o caso, a ancestralidade seria semelhante a valorização simbólica da cultura negra e a folclorização do negro pelo estado Brasileiro, que foi um elemento principal na constituição da cultura dita nacional e da construção da ideologia da democracia racial. A ancestralidade se baseia no passado como fonte de sabedoria, experiência, filosofia, e cultura para aplicar no presente. O passado não é mobilizado como algo estático, mas que está situado historicamente e ao mesmo tempo se emerge dentro de novas situações e contextos.

Dentro do trabalho e ação política e cultural do Orùnmilá, discerni quatro aspectos principais que revelam o caráter da ancestralidade Africana e Afro-Brasileira como aspecto fundamental para a luta anti-racista.

Primeiro, a ancestralidade envolve uma serie de valores culturais, sabedoria, e uma cosmovisão que vem da memória e princípios filosóficos que dão ordem a vida e as relações comunitárias.

Esses valores, sabedoria e a cosmovisão são o que formam e constroem as maneiras de entender e agir no mundo.

Segundo, a ancestralidade envolve os processos históricos e experiências que, através do tempo, formaram a posição e situação que o indivíduo habita no presente. Ancestralidade não é estática, ela e cumulativa e emergente porque ela se-forma continuadamente em cima da articulação de valores, significados, e ações dentro de novos contextos e experiências. A ligação do ser no presente com os ancestrais engloba as experiências históricas e as mudanças vividas através das gerações. Isso é o que dá a ancestralidade a sua significância. A ancestralidade não é uma tentativa de re-estabelecer ou voltar para uma África romântica do passado, mas uma tentativa de pensar, desenvolver, e transmitir a cultura, experiência, e memória ancestral para nos orientar no presente.

Terceiro, a ancestralidade envolve a oralidade e práticas expressivas e também os espaços coletivos (de comunidade e de resistência) que geram e transmitem história, cultura, e sabedoria.

Nas Américas como um todo, afro-descendentes re-criaram ou criaram novas instituições e formas de coletividade nas lutas para autonomia e autodeterminação dentro de condições da escravização e do preconceito e discriminação racial. O conteúdo e a experiência que fazem

Parte da ancestralidade necessitam práticas e instituições para se desenvolver e serem transmitidos.

Quarto, a ancestralidade fundi, ou faz a junção entre sabedoria, espiritualidade, valores, e cosmologia ancestral com a experiência histórica para construir uma prática política Afrodiasporica, uma ação cultural que visa a transformação das estruturas do saber e poder.

Ancestralidade como prática política constroem alternativas no presente e possibilidades para uma igualdade e cidadania substantiva no futuro. Como prática política, a ancestralidade se baseia no passado ancestral, mas é algo vivo e emergente, algo dinâmico para ser trabalhado, desenvolvido, e compartilhado dentro das lutas contra a desigualdade racial.

Para resumir, a ancestralidade engloba a continuidade cultural, memória, e sabedoria ancestral ao mesmo tempo que ela engaja-se com o movimento da história, as mudanças através das gerações.

Dessa maneira, ancestralidade não somente transmite cultura e sabedoria ancestral, ela responde diretamente aos legados coloniais que estruturam a condição dos afro-descendentes no presente.

E é dessa maneira que a ancestralidade constitui a base principal da ação do Centro Cultural Orùnmilá.

A ancestralidade surge da perspectiva da sabedoria, cosmovisão, história cultural, significados, e práticas Africanas e Afro-Brasileiras, ao mesmo tempo que ela engloba a sabedoria que vem da experiência de um povo historicamente subalternizado, ou seja, das experiências vividas de colonização, segregação, e dominação. É por essas duas vertentes, o conteúdo e a experiência vivida, que a ancestralidade Afro-Brasileira providencia um olhar crítico sobre a estrutura da sociedade. Desta maneira, a ancestralidade Afro-Brasileira traz uma base que lida com duas vertentes do racismo no Brasil: Primeiro, ela oferece um direcionamento a uma identidade histórica que quebra a negação da identidade negra que produziu a falta da auto-estima do negro e as representações negativas e desvalorização do povo negro. A ancestralidade desvenda a experiência histórica específica de ser negro e Brasileiro. Ela expõe a inclusão limitada que foi proporcionada pela ideologia da democracia racial. Segundo, a ancestralidade Afro-Brasileira se direciona a transformação dos valores, da sabedoria, e dos modos de vida que definem as instituições e práticas da sociedade e das relações humanas. Se uma base principal do racismo e do sistema de poder vigente é a negação de outros modos de vida e formas de saber, a ancestralidade traz uma maneira de desconstruir isso.

Ancestralidade e Desenvolvimento Global

O reconhecimento crítico da diversidade epistemológica (de valores, práticas, e formas de cultura e sabedoria) é reconhecer as possibilidades coletivas que essas epistemologias podem criar para levar a sociedade em direção de uma transformação profunda. Em vez da diferença reificada, ou a valorização simbólica, teríamos um pluriculturalismo crítico onde a ancestralidade Africana e Afro-Brasileira contribuirá substancialmente. A lei 10,639/2003 é um passo nessa direção que tem o potencial de estabelecer o que o Boaventura Santos chama de uma ecologia cosmopolita de saberes. Essa ecologia de saberes cria “diálogos e alianças entre diversas formas de sabedoria, cultura, e cosmovisões que respondem a diferentes formas de opressão que” reproduzem as hierarquias dos legados do colonialismo. Desta maneira, a sabedoria e diversidade são mobilizadas em torno da construção de uma sociedade mais igual e uma inclusão que envolve não simplesmente a inserção de povos excluídos dentro de um sistema determinado, mas a mudança do próprio sistema causado pela inserção substantiva de povos, culturas, e sabedorias historicamente excluídas, invisibilizadas, e oprimidas.

Quando o Centro Cultural Orùnmilá luta para implementação de um projeto que execute a Lei 10,639/2003 na educação municipal, a idéia é inserir a ancestralidade Afro-Brasileira no espaço escolar, ocupando-o de maneira crítica para desconstruir as hierarquias do saber e as representações negativas e racistas construídas ao longo da história do desenvolvimento.

Brasileiro. Assim, estudantes negros e brancos passam não só ter representações positivas do negro e de sua história, mas também um conteúdo cultural e filosófico para trabalhar, para desenvolver um pensamento crítico e diverso sobre história, sociedade, e identidade. Com essa inclusão real, um verdadeiro diálogo entre os saberes pode se estabelecer.

Essa mobilização da ancestralidade não só valoriza e constitui novas possibilidades para os povos negros. Pensando na presente crise econômica, a destruição do meio ambiente, e o fato de que, depois de séculos de promessas que o desenvolvimento capitalista trará igualdade e prosperidade para todos, talvez a ancestralidade Africana e Afro-Brasileira poderá contribuir para um novo direcionamento do desenvolvimento global. Uma perspectiva que vem da experiência histórica da opressão, junto com o conteúdo filosófico da cultura Africana e Afro- Brazileira tem a possibilidade de trazer novas idéias e redirecionar a discussão em torno do conteúdo e a definição do que mesmo significa “desenvolvimento.”

É por isso que a luta anti-racista tem que ir alem de uma inclusão no sistema vigente que visa o melhoramento socioeconômico de povos excluídos. A luta tem que se-empenhar em direção d revisão crítica dos fundamentos do sistema pela perspectiva das epistemologias e cosmovisões historicamente excluídas da discussão e dos espaços que produzem o saber dominante.


Alexandre Emboaba Da Costa

Doutor em Sociologia do Desenvolvimento pela Universidade de Cornell em Ithaca, Nova York.

Atua como Professor na Universidade de Queen’s na cidade de Kingston, Canadá.

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