Como as práticas do crime organizado e a violência atingem crianças e jovens pobres
Nas favelas e bairros pobres adjacentes das grandes cidades brasileiras o policiamento é precário, a investigação, muitas vezes inexiste, diferentemente do que acontece nos bairros mais ricos da cidade. Este é um elemento importante na equação que vai explicar a existência de pontos quentes de crimes violentos, especialmente o homicídio, um crime quase nunca investigado nas áreas onde há favelas dominadas por traficantes. Além da vulnerabilidade que a pobreza cria, a rede de relações sociais e de proteção institucional do sistema de justiça tem enormes falhas em tais locais.
Em São Paulo, uma pesquisa apontou o homicídio como crime de pobres contra pobres. As autoras ressaltaram dois aspectos: 46,3% dos bairros visitados, todos nas zonas mais carentes da cidade, não contavam com ronda policial; a maior parte dos casos decorria de conflitos banais na periferia que poderiam ser evitados com políticas públicas que criassem formas de mediação na vizinhança ou na família. Por fim, a maior parte das vítimas teve morte anunciada e seus familiares sabiam do destino por terem elas vinculações com traficantes de drogas ilegais, seja como usuários contumazes, seja por participação em outros crimes.
No Rio de Janeiro, estimativas demográficas indiretas, a partir de dados censitários de 2000, permitiram a comparação entre diferentes regiões administrativas (RA) da cidade, entre as quais figuram as cinco mais populosas favelas em diferentes zonas da cidade. Por meio delas é possível identificar as regiões de maior risco de mortes violentas, estimando a probabilidade de se morrer jovem, antes dos 30 anos para quem sobreviveu até os 15, visto que nesta faixa de idade 80% das mortes são violentas.
As diferenças entre as RAs são significativas: na Lagoa, bairro de alta renda familiar, 3,1 entre os mil sobreviventes até os 15 anos não completaram 30; no Complexo do Alemão, conjunto de favelas com o menor IDH da cidade, 12,9 entre mil morrem antes dos 30. As outras três RAs com maior proporção de jovens que não chegam aos 30 são favelas dominadas por traficantes: Jacarezinho (10), Maré (9), Rocinha (9) e Cidade de Deus (6).
Quando inseridas no mapa da cidade, quatro das RAs, onde o risco de morrer jovem é maior, estão localizadas nos subúrbios, perto da Baía de Guanabara e dos aeroportos e portos, aonde chegam navios e aviões, assim como ao longo da Avenida Brasil, por onde passa o transporte rodoviário que liga o Rio de Janeiro a outros estados e aos países produtores de drogas ilegais.
Segundo dados da pesquisa domiciliar de vitimização realizada em 2006 pelo Nupevi, a Polícia Militar era mais violenta e menos presente nas favelas e nos bairros pobres dos subúrbios, onde estão as RAs que exibiram maior risco de morte antes dos 30 anos. A PM disparava dez vezes mais tiros nas favelas do que no asfalto. O barulho de tiros, por outro lado, era ouvido por 60% dos entrevistados nos subúrbios, 65% no centro, mas por 30% na média da cidade.
Os comandos passaram a disputar violentamente o território onde controlavam os negócios, a proibir os moradores de áreas dominadas de cruzar o seu perímetro, até mesmo para visitar amigos ou parentes. Por isso, favelados, desses bairros, falavam de uma “guerra sem fim” que opunha traficantes de comandos inimigos ou policiais contra traficantes. Na guerra, não somente os quadrilheiros, mas também os jovens que viviam em favelas amigas, eram obrigados a ajudar cada vez que os opositores atacavam qualquer favela do mesmo comando. Os “soldados” ou “falcões” formavam então um “bonde”, que responderia ao ataque de outro “bonde”, constituído da mesma maneira. Por isso, os vizinhos não tinham permissão de cruzar as fronteiras entre as favelas inimigas. Homens foram mortos porque passaram de um setor a outro dominado por redes beligerantes do tráfico. Mesmo para trabalhar, mesmo para se divertir no baile. Mulheres foram mortas por ousarem namorar homens de favelas “inimigas”.
Tudo indica que melhorar a qualidade de atendimento na escola básica, além de educar para a civilidade, seja a saída para anular o retrocesso civilizatório que enfrentamos. No Brasil, não é o caso, como nos países onde exércitos mobilizam crianças e adolescentes, de trazer a criança de volta à escola, à família, à vizinhança, deixando de ser soldados. Trata-se de melhorar a escola de modo que não se tornem defasados no estudo e acabem evadindo-se dela.
O ponto central é, portanto, diminuir o contingente de jovens pobres que não trabalham nem estudam, que vagam pelas ruas, que reforçam as hostes dos que procuram as quadrilhas para se sentirem protegidos e encontrarem fontes de poder, dinheiro e aceitação de seus pares. Ensinar, sobretudo, o respeito aos outros – concidadãos, professores, familiares, vizinhos, colegas – a competir sem querer ganhar de qualquer maneira.
Mesmo assim, projetos baseados na vizinhança, em que moradores adultos arranjam atividades para acompanhar e socializar as crianças e adolescentes em situação vulnerável, não podem ser descartados. As escolas de samba, os blocos de carnaval e as escolinhas de esporte devem ser apoiadas, tanto quanto os novos projetos que desenvolvem identidades ou estilos juvenis globalizados, como os do hip-hop. Muitos moradores de bairros pobres e favelas, adultos, já estão mobilizados para interagir com os jovens de suas famílias e vizinhanças, mas faltam-lhes apoio público e reconhecimento.
Como o trauma resultante das experiências de violência é coletivo, essas iniciativas são mais exitosas em atrair os jovens e iniciar diálogo com eles do que programas que focam no indivíduo. Neles, as famílias dos jovens podem também ser envolvidas e passar a participar do seu crescimento. As formas de associação vicinal implantadas na cidade têm exatamente esse espírito e constituíram, portanto, veículos importantes para se chegar aos jovens desgarrados e prepará-los para a vida adulta.
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