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domingo, 30 de janeiro de 2011

Mulheres Negras: Nós Carregamos a Marca

“Nós carregamos a marca” é uma frase clássica de Luiza Bairros que serve para exemplificar a forma pela qual nós negr@s somos perseguidos e violentados física e simbolicamente. A marca que carregamos esta relacionada a nossa cor, a nossa sexualidade, e logo a nossa classe social, e sobre ela são construídos uma séria de significados que são atribuídos aos nossos corpos.
Nesse texto quero falar especificamente sobre as marcas que nós mulheres negras carregamos, e as marcas que nós criamos sobre os nossos próprios corpos e que queremos carregar. Vou começar por aquelas marcas que pesam, responsáveis por uma realidade social que a maioria de nós compartilhamos.
O colonialismo europeu violentou de todas as maneiras possíveis a população negra em África e na diáspora, e se realizarmos uma reflexão sobre a condição da mulher negra neste contexto, há algo de peculiar. No caso do Brasil, por exemplo, a miscigenação não significou a ausência de racismo, mas a causa de uma racismo diferente, que envolve uma discussão sobre raça e sexualidade (SANTOS, 2003)[ii]. A miscigenação ainda hoje é glorificada como exemplo da nossa “democracia racial”, utilizada para justificar a existência de uma harmonia entre a Casa Grande e a Senzala, como dizia Gilberto Freire em seus escritos. O que não é levado em consideração é a violência pela qual foram expostas milhares de mulheres negras diante do sistema colonial, desconsidera-se os atos de violência sexual, estupros em detrimento do discurso de que não temos conflitos raciais e que somos um povo misturado.

Sufragaram o racismo sem raça, ou um racismo mais “puro” do que a sua base racial. Sufragaram também o sexismo sob o pretexto do anti-racismo. Por essa razão, a cama sexista e inter-racial pôde ser a unidade de base da administração imperial e a democracia racial pôde ser exibida como um troféu anti-racista sustentado pelas mãos brancas, pardas e negras do racismo e do sexismo. (SANTOS, 2003, P.28).

O que acontece é que os corpos das mulheres negras foram marcados por um tipo de violência que, ao ser mascarado pela ideologia da mistura cordial, tem sido ignorada e dessa forma interfere no processo de desconstrução dos estereótipos sobre os quais as mesmas estão expostas. Quando não se reconhece a existência do problema, nada se faz para combatê-lo.
Um exemplo dos estigmas que estão colocados sobre os corpos das mulheres negras é o caso de Vênus Hotentote. Seu nome original é Sarah Baartman, nascida em 1789 na região da África do Sul, no início do século XIX foi levada para a europa e exposta em espetáculos públicos, circenses e científicos, devido aos seus traços corporais. Segundo Damasceno (2008)[iii] Sarah Baartman deu um corpo à teoria racista, explico.
Pertencente ao grupo Khoi-san, Sarah, assim como outras mulheres desta origem, tinha nádegas protuberantes, característica que chamava a atenção dos europeus. Os contornos desta mulher negra eram explorados publicamente por cientistas e curiosos em geral. Seu corpo deu vida a teoria de raça na modernidade, e as diferenças do corpo de Vênus Hotentote em relação aos europeus, serviu para os mesmos, através do olhar sobre a outra, estabelecer que seus corpos masculinos, brancos eram a base da normalidade.


“Para Wiss (1994), foram pelas exibições públicas do século XIX que os europeus começaram a perceber a diferença. E notam ao escrutinizar Sarah, que esta pode assumir um caráter racializado e sexualizado através do corpo. Se no século XIX o corpo europeu masculino representa a normalidade, o quê se não o corpo de uma mulher, negra, para representar sua radical alteridade? Não foi com surpresa que Jay Gould (1990) notou ao visitar o Museu do Homem de Paris no início dos anos 1980, que próximo de onde estavam expostos os cérebros de franceses “notáveis” como Renée Descartes e Pierre Broca, representantes do racionalismo francês, não havia um só cérebro de mulher, como contraponto eram expostos próximos deles os genitais de “uma negra, uma peruana e da Vênus Hotentote”. Se Saartje servia no século XIX para marcar a diferença entre homens e mulheres, contribuiu também para que se constituísse a identidade masculina européia. (...)
A medicina do século XIX foi uma dessas práticas discursivas que inscreveu o corpo como lugar de significação de diferença. Segundo Gilman (1985), o discurso científico médico construiu o conceito de negritude e de racismo a partir da diferenciação do corpo
feminino negro pensado como anormal, desviante em relação ao corpo masculino europeu. Naquele se articulavam categorias de raça e gênero que universalizadas, acabaram por criar uma iconografia de hipersexualidade da mulher negra que impera até hoje (...)” (DAMASCENO, 2008)

Após sua morte em 1815, Sarah continuou sendo exposta na europa, “sua genitália, seu esqueleto e o molde de seu corpo passaram a ser expostos publicamente no Museu do Homem”, e só em 1985 seus restos mortais foram devolvidos ao continente africano.
A exotização exacerbada do corpo da mulher negra, construída historicamente a partir da experiência colonial, está presente até hoje, em todos os lugares onde há a diáspora africana. No Brasil, quando nos remetemos ao mundo das passarelas, o predominante ainda é o corpo ocidental, a mulher branca, magra, de traços finos, e tudo isto dita quais são os padrões de beleza dominantes em nossa sociedade. Se nos voltarmos ao corpo da mulher negra, percebemos, assim como o caso de Vênus Hotentote, que o mesmo continua sendo visto como objeto de exploração sexual, basta comparar o mundo das passarelas com as avenidas do carnaval.
E de que forma isso interfere em nossas vidas? O olhar exotizado construído sobre o corpo da mulher negra nos coloca uma barreira para alcançar espaços de poder, nos torna mais vulneráveis a agressões sexuais, simbólicas, e nos reserva o paradoxo de exploração sexual e solidão, além de termos que carregar diversos estereótipos. E como reagimos a isso?
Os movimentos de mulheres negras vêm, há anos, tentando desconstruir os estigmas que são colocados sobre nós, e uma das reações é a forma como ressignificamos as características corporais a nosso favor. Nós agenciamos a cor, os traços, o cabelo e as origens como características valorativas, e assim vamos contribuindo para a construção da auto-estima da mulher negra. Além da construção da identidade, fazemos uma coisa ainda mais importante, que é forçar as barreiras e ocupar os espaços de poder, e esse movimento não é de hoje, mas começou com as nossas ancestrais que pensaram, realizaram e lideraram movimentos de resistências contra as opressões racistas e sexistas. Essa luta é secular.
Errou quem olhou para nós, historicamente, e nos colocou como passivas diante da opressão. Nós sempre existimos como movimento de resistência, não é a toa que hoje a nossa realidade é diferente.
Talvez o maior erro do colonizador seja ignorar a nossa existência como sujeitos de transformação social. São vários corpos de Hotentotes criando novos lugares.



[i] Jaqueline Lima Santos é militante do Movimento Negro Unificado. Mestranda em Ciências Sociais – Antropologia pela UNESP. Contato: santos.jaquelinelima@gmail.com .
[ii] Santos, Boaventura de Sousa. “Entre Próspero e Caliban: Colonialismo, pós-colonialismo e interidentidade”. In: Novos Estudos, n° 66, 2003 (p.23-52).
[iii] DAMASCENO, Janaina. O corpo do outro. Construções raciais e imagens de controle do corpo feminino negro: O caso da Vênus Hotentote. Caderno de Publicações Fazendo Gênero 8, 2008.

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