Desde o início do debate em torno da obra de Monteiro Lobato, Caçadas de Pedrinho, adotado pelo Ministério da Educação, recebemos insistentes apelos pela manifestação a respeito do assunto, uma vez que atuamos nas área da escrita e também da ilustração. Dada a complexidade do tema envolvendo aspectos históricos, econômicos, sociais e, principalmente raciais, consideramos todas as vertentes para não cair na armadilha em que foi jogado há algum tempo o insipiente programa de ações afirmativas no Brasil, reduzido à discussão simplória do ser contra ou a favor de cotas nas universidades.
"Bastou o conselho nacional de educação pedir o mesmo cuidado no livro caçadas de pedrinho com relação à questão racial para alguns setores da nossa sociedade mostrarem sua fúria"
Discutir se Lobato e sua obra são ou não racistas deve ser apenas o início de um debate maior, de como tem sido tratada a questão racial no ambiente escolar brasileiro, uma vez que temos a Lei de Diretrizes e Bases (LDB) da Educação, com seu artigo 26A, apregoada aos quatro cantos do planeta como exemplo da ação do Estado brasileiro para a reparação de lacunas históricas no âmbito étnico racial da educação.
O direito de expressar-se de forma racista está garantido a qualquer criador, morto ou vivo, do presente ou do passado, pois não existe lei que rege a criação. Mas o direito do Estado brasileiro adquirir material didático que possa ser considerado racista, tem que ser questionado, principalmente, se esse Estado for regido por leis e diretrizes que asseguram exatamente o contrário.
O principal argumento em defesa da obra é o contexto histórico no qual ela foi concebida. Nesse aspecto é importante ressaltar que a lei foi criada exatamente como forma de reparação histórica para corrigir décadas de proliferação de textos e ilustrações que estereotipavam a imagem do negro em nosso país. Tempos esses em que meia dúzia de editores, autores em forma de lobos famintos, se locupletavam e enriqueciam vendendo milhões de livros para o governo com critérios técnicos e pedagógicos questionáveis e, muitas vezes, com conteúdo racista.
Graças à ação mais efetiva e vigilante da sociedade civil, respaldada por leis e diretrizes, há mais de uma década essa situação vem mudando, novos gestores de educação têm surgido com uma consciência cada vez mais voltada para temas atuais como: saúde, sexualidade, meio ambiente e questão racial. Os primeiros temas não têm enfrentado grande resistência no trato das matérias, um bom exemplo é que o mesmo livro Caçadas de Pedrinho foi advertido por relatar fatos que feriam a visão ambiental atual, como a preservação de animal em extinção, e não houve uma queixa sequer a esse respeito. Mas bastou o Conselho Nacional de Educação pedir o mesmo cuidado no livro com relação à questão racial para alguns setores da nossa sociedade mostrarem sua fúria.
Interessante observar que os setores que mais radicalizaram contra a decisão do conselho que pediu apenas para colocar um adendo no livro, são os mesmos que sempre se posicionaram contra às ações afirmativas e cotas para negros e contrários também à regulamentação e posse de terras para quilombolas. Enfim, aqueles que historicamente sempre se posicionam de forma radical contra todo o tipo de ação que vise reparar ou distribuir qualquer coisa, mesmo que seja um 'desculpe-nos por um dos nossos ter se posicionado de maneira racista há mais de setenta anos'.
Encerro lembrando a frase do reverendo Martin Luther King que diz : "O que me preocupa não são os maus, mas o silêncio dos bons."
O que me preocupa não é o racismo de um escritor que tem seu trabalho divulgado em escolas brasileiras faz quase um século. O que me preocupa é um Osvaldo Camargo, escritor negro que completa em 2010 sessenta anos de vida literária dedicada à literatura afro-brasileira, não ter sua obra reconhecida no ambiente escolar em seu próprio país, cuja metade da população é de afrodescendentes.
Fonte: Correio Nagô
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