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sábado, 16 de julho de 2011

A MUSICALIDADE DO CANDOMBLÉ NA FORMAÇÃO DA CULTURA BRASILEIRA DE AFRODESCENDÊNCIA



Durante quase quatro séculos, negros africanos foram caçados e levados ao Brasil para trabalhar como escravos. Separados para sempre de suas famílias, de seu povo, do seu solo (de fato apenas alguns poucos conseguiram retornar depois da abolição da escravidão), os africanos foram aos poucos se adaptando a uma nova língua, novos costumes, novo país. Foram se misturando com os brancos europeus colonizadores e com os índios da terra, formando a população brasileira e sua cultura. Como aconteceu em outros países da América, a contribuição dos africanos na formação do Brasil foi essencial tanto na composição física da população quanto na conformação do que viria a ser sua cultura, que inclui dimensões como língua, culinária, religião, música, estética, valores sociais e estruturas mentais. Muitos foram os povos africanos representados na formação brasileira, os quais podem ser classificados em dois grandes grupos lingüísticos: os sudaneses e os bantos.

As diferentes etnias chegaram ao Brasil em distintos momentos, predominando os bantos até o século XVIII e depois os sudaneses, sempre ao sabor da demanda por mão-de-obra escrava que variava de região para região, de acordo com os diferentes ciclos econômicos de nossa história, e do que se passava na África em termos do domínio colonial europeu.

Nas últimas décadas do regime escravista, os sudaneses iorubás eram predominantes na população negra de Salvador, a ponto de sua língua funcionar como uma espécie de língua geral para todos os africanos ali residentes, inclusive bantos. Nesse período, a população negra, formada de escravos, negros libertos e seus descendentes, conheceu melhores possibilidades de integração entre si, com maior liberdade de movimento e maior capacidade de organização. O cativo já não estava preso ao domicílio do senhor, trabalhava para clientes como escravo de ganho, e não morava mais nas senzalas isoladas nas grandes plantações do interior, mas se agregava em residências coletivas concentradas em bairros urbanos próximos de seu mercado de trabalho. Foi quando se criou no Brasil, num momento em que tradições e línguas estavam vivas em razão de chegada recente, o que talvez seja a reconstituição cultural mais bem acabada do negro no Brasil, capaz de preservar-se até os dias de hoje: a religião afro-brasileira.

E como parte integrante do culto, e ao mesmo tempo como elemento constitutivo do cotidiano do negro, preservou-se no Brasil um dos mais ricos filões culturais da África: a música, mais especificamente, a música religiosa, com seus ritmos, instrumentos e formas de composição poética.

Assim, em diversas cidades brasileiras da segunda metade do século XIX, surgiram grupos organizados que recriavam no Brasil cultos religiosos que reproduziam não somente a religião africana, mas também outros aspectos da sua cultura na África. Nascia a religião afro-brasileira dos orixás, voduns e inquices, chamada candomblé primeiro na Bahia e depois pelo país afora, tendo também recebido nomes locais, como xangô em Pernambuco, tambor-de-mina no Maranhão, batuque no Rio Grande do Sul. Os principais criadores dessas religiões foram negros das nações iorubás ou nagôs, especialmente os provenientes de Oió, Lagos, Queto, Ijexá, Abeocutá e Iquiti, e os das nações fons ou jejes, sobretudo os mahis e os daomeanos. Floresceram na Bahia, em Pernambuco, Alagoas, Maranhão, Rio Grande do Sul e, secundariamente, no Rio de Janeiro.

Entoaram letras em língua ritual de origem banta, hoje muito deturpada e misturada com palavras do português, soando os tambores com as palmas das mãos e dedos, enquanto os iorubás e fons-descendentes o fazem com varetas, os candomblés angola e congo, como são chamados os templos bantos, cantam um tipo de música que soa muito familiar aos ouvidos dos não-iniciados. Pois foi justamente da música sacra desse candomblé banto que mais tarde se formou, no plano da cultura profana do Rio de Janeiro, um gênero de música popular que veio a ser uma importante fonte da identidade nacional brasileira nos decisivos anos 30 do século XX: o samba.

Por muito tempo o candomblé e as outras formas regionais de culto afro-brasileiro permaneceram mais ou menos confinados a seus locais de origem. Mas logo no início, com o fim da escravidão, muitos negros haviam migrado da Bahia para o Rio de Janeiro, levando consigo sua religião de orixás, de modo que na então capital do país reproduziu-se um vigoroso candomblé de origem baiana, que se misturou com formas de religiosidade negra locais, todas com influências de sincretismos católicos, e com o espiritismo kardecista, originando-se a chamada macumba carioca e pouco mais tarde, nos anos 20 e 30 do século passado, a umbanda. A umbanda e o samba constituíram-se mais ou menos na mesma época, ambos frutos do mesmo processo de valorização da mestiçagem que caracterizou aqueles anos e de construção de uma identidade mestiça para o Brasil.

No Brasil verificou-se um grande retorno à Bahia, com a redescoberta de seus ritmos, seus sabores culinários e toda a cultura dos candomblés. As artes brasileiras em geral (música, cinema, teatro, dança, literatura, artes plásticas) ganharam novas referências, o turismo das classes médias do Sudeste elegeu novo fluxo em direção a Salvador e demais pontos do Nordeste. O candomblé se esparramou muito rapidamente por todo o país, deixando de ser um religião exclusiva de negros, a música baiana de inspiração negra fez-se consumo nacional, a comida baiana, nada mais que comida votiva dos terreiros, foi para todas a mesas, e assim por diante. Ia-se completando, agora de modo escancarado, uma retomada da influências africanas na cultura brasileira, a partir dos terreiros de candomblé, que lá pelos anos 20 e 30 já tinha dado à luz, sem dizer exatamente de onde vinha, a música popular brasileira considerada a mais legítima.

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