Por Kássio Motta
Certa vez ouvi de uma docente, participante da Formação de A Cor da Cultura, que era direito dela – ainda que tivesse consciência da discriminação racial vigente na sociedade brasileira – não querer se colocar “nesse lugar” – isto é, o lugar do Outro, lugar do discriminado, como sugeria a atividade. A professora foi, então, lembrada de que o projeto se realiza como uma forma de ação afirmativa, promotora do reconhecimento e da elevação de autoestima da população afrodescendente, amparada na legislação que torna compulsório o ensino de História e Cultura Afro-brasileiras.
Infelizmente, mesmo na esfera da educação, ainda precisamos recorrer à Lei Nº 10.639/03 para justificar iniciativas relacionadas à desconstrução das categoriais raciais que organizam o imaginário e os espaços sociais brasileiros. Infelizmente, precisamos da regulação legal para fazer com que percebamos o quanto estávamos, estamos, e, certamente, estaremos, ainda que por algum tempo, envoltos pela vergonhosa discriminação racial.
Mas, afora a legislação, o individualismo não nos permite perceber o quanto antiéticos, portanto também discriminatórios, são certos posicionamentos, enunciados e práticas. Tão naturalizados, irrefletidos, quase reflexos, incorporados, que não nos damos conta do que falamos, fazemos, do modo como olhamos ou reagimos frente às diferenças.
Precisamos recorrer menos à Lei e mais à ética, às práticas que gerem o bem comum, que superem o individualismo e ampliem o olhar para o entorno, para o mundo, para os Outros e para nós mesmos. Devemos olhar para nós mesmos não de forma ensimesmada, mas, sim, dentro do contexto social. Um olhar que nos permita enxergar a riqueza da diversidade humana e experienciar a alteridade. Como afirmou Paulo Freire, que possibilite compreendermo-nos como “um ser de relações num mundo de relações” (FREIRE, 1992).
Portanto, mesmo que não se sinta pertencendo ao “lugar” do discriminado, ao enxergar as desigualdades e injustiças, o ser humano, esse ser de relações, tem o dever de agir contra elas, em prol de uma sociedade brasileira mais justa e equânime.
Se entendemos a escola como um espaço de crítica às relações sociais – principalmente às étnico-raciais –, a plenitude do sistema educacional só será alcançada quando a escola for um espaço promotor de conhecimentos e transformação das injustiças e desigualdades sociais vigentes (BRASIL, 2004).
Mas não bastam a criticidade, a reflexão, a geração de conhecimentos e as transformações. Temos que potencializar nossa dimensão ética, que Regina Migliori denomina como competência amorosa.
“Uma forma de inteligência vinculada àquilo que a sabedoria universal traduz como valores humanos universais.
Os valores humanos nos levam a reconhecer a riqueza da diversidade oferecida por uma realidade complexa e complementar. Nosso agir no mundo passa a respeitar as diferenças numa perspectiva que inclui conhecimento e amor, competência e sensibilidade. Daí a importância de estabelecermos um circuito transdisciplinar não só entre as diversas áreas de conhecimento, mas também entre as múltiplas dimensões humanas e suas próprias formas de produzir conhecimento.” (MIGLIORI, 2008).
É justamente na direção da transdisciplinaridade entre as áreas do conhecimento e entre as múltiplas dimensões do ser que foi pensado o projetoA Cor da Cultura. Com base nos Eixos Temáticos (ET) do Ministério da Educação, nos Pilares da Educação (PE) da Unesco e nos Valores Civilizatórios Afro-brasileiros (VC) a metodologia privilegia a acolhida, o diálogo e a alteridade.
Ao trabalhar o ser humano como ser de múltiplas dimensões, a metodologia procura valorizar todas as formas de produção de conhecimento, sejam elas afetivas, sensitivas, emocionais, espirituais. E não somente as racionais, no sentido mais limitado do termo. Por meio de uma série de atividades lúdicas, dinâmicas de grupo e plenárias sobre os temas propostos, a metodologia promove um diálogo de respeito às diferenças, em que a alteridade é constantemente incentivada.
Essa perspectiva metodológica compreende que o conhecimento deve ser construído e reconstruído, processualmente e continuamente (ET). E, sobretudo, coletivamente, valorizando os saberes e experiências individuais. Nessa dialética de expressar a própria opinião, ouvir as contrárias e tecer uma terceira, uma quarta, uma outra opinião, os participantes devem aprender a ser (PE)
“para desenvolver, o melhor possível, a personalidade e estar em condições de agir com uma capacidade cada vez maior de autonomia, discernimento e responsabilidade pessoal. Com essa finalidade, a educação deve levar em consideração todas as potencialidades de cada indivíduo: memória, raciocínio, sentido estético, capacidades físicas, aptidão para comunicar-se” (UNESCO, 2010).
Assim, o projeto A Cor da Cultura trabalha alguns valores civilizatórios afro-brasileiros, como a oralidade, a ludicidade, a memória, a circularidade – no infindável processo de construção e reconstrução de conhecimentos –, e, por que não dizer, o Axé, uma vez que sendo força vital está presente em tudo e em todos os seres – imagine no processo de aprender a ser, quando precisamos também aprender a conviver (PE). E conviver pressupõe respeito às diferenças, como, por exemplo, aos diversos saberes e fazeres dos educandos e aos distintos tempos pedagógicos de cada um, pois todos aprendem em tempos e ritmos diferentes (ET).
Uma pedagogia da diversidade precisa, não só promover o respeito à diferença, mas, principalmente, encorajar o cooperativismo e o comunitarismo(VC), para efetivamente gerar uma aprendizagem inclusiva (ET), não apenas em termos de diversidade metodológica e avaliativa, mas de coparticipação.
Por fim, a metodologia desenvolvida em A Cor da Cultura pressupõe umagestão participativa e que tenha como referência a elaboração coletiva do Projeto Político Pedagógico (ET), que pense a diferença como complementaridade e possibilite a circularidade (VC) deensinaraprenderensinar.
Para além do conhecimento sobre História e Cultura Afro-brasileiras, A Cor da Cultura visa a despertar em educadores(as) e educandos(as) uma disposição de aprender a conhecer, de aprender a aprender (PE) em “todas as oportunidades oferecidas pela educação ao longo da vida” (UNESCO, 2010).
Somente ao desenvolvermos esta amplitude cognitiva poderemos romper com os antolhos que formatam uma visão discriminatória. Percepção estreita que presume a discriminação racial atingindo apenas um “lugar” social. Um locusao qual pertence, exclusivamente, o Outro. Precisamos despertar para os desajustes que a discriminação impinge também aos discriminadores, que supervalorizam-se rebaixando sistematicamente o diferente.
Ao reconhecer a realidade de discriminação racial em que vivemos, é preciso atuar para transformá-la. Não fazê-lo é uma evidência concreta de que algum benefício se tira da situação em que nos encontramos. E por isso, a resistência à mudança. Mudar, por exemplo, no sentido de reconhecer que muitas vezes aquilo que, orgulhosamente, classificamos como mérito é, de fato, um privilégio (BENTO, 2003). Ou seja, em vez de conquistas por merecimento, obtêm-se “conquistas” por regalias e a vantagens em detrimento de outros. Esse desvirtuamento não pode ser benéfico a ninguém.
Com a finalidade de expor como o racismo e a discriminação racial afeta a todos, o projeto A Cor da Cultura cria uma tecitura com Eixos Temáticos, Pilares Educacionais e Valores Civilizatórios Afro-brasileiros. Uma trama metodológica cujas costuras são falas, sentimentos, ideias, anseios, memórias, reflexão e autorreflexão. Um espaço para se perceber ligado ao mundo e ao Outro, pois
“a pessoa que se abre para si mesma, para o outro e para o mundo, construindo relações autênticas e um olhar crítico sobre a realidade, inaugura com essa abertura a relação dialógica” (LOUREIRO apud GUSTSACK, 2008).
Ao formar educadores para abordar a temática étnico-racial em sala de aula,A Cor da Cultura rompe com a indiferença e desperta o potencial ético dos participantes. Intenta fazer com que todos percebam que têm a responsabilidade de intervir em qualquer “lugar” de discriminação, pois se a Humanidade é una, reduzir ou permitir que se reduza a humanidade do Outro é reduzir-se a si próprio.
Legenda
ET - Eixos Temáticos do Ministério da Educação
PE - Pilares da Educação da Unesco
VC - Valores Civilizatórios Afro-brasileiros A Cor da Cultura
Kassio Motta é mestre em Antropologia pela Universidade Federal Fluminense, Pesquisador do Laboratório de Etnografia e Estudos em Comunicação, Cultura e Cognição - LEECCC/ UFF.
Referências bibliográficas
BENTO, Maria Aparecida Silva. Branquitude: o lado oculto do discurso sobre o negro. In CARONE, Iray e BENTO, Maria Aparecida Silva (Orgs.). Psicologia social do racismo: estudos sobre branquitude e branqueamento no Brasil. 4ª ed. Petrópolis: Vozes, 2003.
BRASIL. Ministério da Educação. Secretaria de Educação Básica. Conselho escolar e o aproveitamento significativo do tempo pedagógico/elaboração. Ignez Pinto Navarro et al. – Brasília: MEC, SEB, 2004.
FREIRE, Paulo. Extensão ou comunicação? 10ª ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992.
GUSTSACK, Felipe. Dicionário Paulo Freire. STRECK, Danilo R., REDIN, Euclides, ZITKOSKI, Jaime José (Orgs.). Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2008.
MIGLIORI, Regina. Ser Sustentável – uma nova consciência em educação. Disponível em
PIZA, Edith. Porta de vidro: entrada para a branquitude. In CARONE, Iray e BENTO, Maria Aparecida Silva (Orgs.). Psicologia social do racismo: estudos sobre branquitude e branqueamento no Brasil. 4ª ed. Petrópolis: Vozes, 2003.
UNESCO. Educação: um tesouro a descobrir. Relatório para a Unesco da Comissão Internacional sobre Educação para o Século XXI. Brasília: ED.96/WS/9, 2010.
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