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terça-feira, 15 de fevereiro de 2011

A LEI 10.639/03 e os Agentes da Lei


“Foi em Diamantina, onde nasceu JK, que a princesa Leopoldina arresolveu se casar.

Mas Xica da Silva tinha outro pretendente, e obrigou a princesa a se casar com Tiradentes.

(...) Da união deles dois ficou resolvida a questão, e foi proclamada a escravidão...

E assim se conta essa história, que é dos dois a maior glória.

Dona Leopoldina virou trem, D. Pedro é uma estação também .”

Samba do Crioulo Doido

Stanislaw Ponte Preta


Nos anos 70, Sergio Porto-Stanislaw Ponte Preta, escritor e humorista, fez um enorme sucesso com o “Samba do crioulo doido”, uma piada sobre a (in)capacidade intelectual e a (não)lucidez do compositor de escolas de samba. Assolado por informações vistas como fora de seu horizonte cultural, ele não consegue dar conta: e “acontece” um samba sem pé, nem cabeça, misturando feitos e personalidades históricas de maneira desconexa e aleatória.

O prestígio daquele autor impôs um silêncio constrangido a muita gente. Era evidente a racialização: afinal também há compositores brancos no mundo do samba. É também flagrante a insensatez da “piada”: compositor “pirado”? Ao contrário, o comum é lembrar com facilidade de grandes sambas enredo nas Escolas de Samba, mesmo os não vencedores, que não chegaram “à avenida”.

Por que foi fácil para aquele intelectual fazer a piada racista? Primeiro porque ele podia fazê-la: sua expressão era assegurada em coluna regular de importante jornal de circulação nacional. Segundo, que no país da democracia racial ele tinha liberdade para isso, pois ninguém é racista: era apenas uma brincadeira... Terceiro, porque ele não conhecia, ou conhecia pouco o mundo do samba, para saber do cuidado com a criação artística, poética, e o lugar especial que têm naqueles contextos. O que se passa de existencialidades e sociabilidades nos “meios negros” em quase todas as regiões brasileiras é pouco conhecido, e quase sempre estereotipadamente,. Apesar de espaços comuns a brancos e negros, sempre houve um viés “racial” na segregação social.


Enfim, a pretensão aqui é argumentar que a lei 10.639/03 vem para ajudar nesse tipo de situação. Tirando-se a Historia e Cultura Afro-Brasileira da culturalização e folclorização – o gueto em que foi confinada – impõem-se rearranjos teóricos e éticos de máxima relevância. De saída, é imperativo problematizar a naturalização da “brincadeira racista”: como não perceber, agora institucionalmente, já que o bom senso não conseguiu se impor, que racialização só é “uma coisa a toa”, uma “brincadeira” para quem racializa, não para quem é racializado? Outra coisa, ainda aproveitando o exemplo: é notável a contribuição de alguns intelectuais que se dedicaram a conhecer o mundo do samba: é comum encontrar-se em seus textos, embora nem sempre analisadas, a multiplicidade de dimensões (política, econômica, e outras) dos processos sociais que instituíram, tantas vezes “a ferro e fogo”, as manifestações culturais de matrizes africanas, sua historicidade, sua simbologia, sua estética, como elementos centrais na formulação da identidade nacional brasileira. Ou seja, o mundo negro, que pode ser apresentado através do “guarda chuva conceitual” História e Cultura Afro-Brasileira, que nos perdoe Sergio Porto, autor de obra admirável sob vários aspectos, não cabe em estereótipos: é muito mais!

Justiça seja feita:

Durante anos o Movimento Negro Brasileiro capitaneando redes mais amplas da luta contra o racismo bradou pela democratização dos currículos educacionais: História da África! História social do povo negro! Respostas: de um lado os eternos “ingênuos”: “Por que a história do negro? Por acaso temos uma história do branco?” Ou “Por que história e cultura afro-brasileira se somos um povo miscigenado?” De outro, se acumulavam pesquisas particularmente na área da Educação: sobre os prejuízos causados pelo preconceito racial à qualidade do ensino, e à formação intelectual e da consciência social cidadã dos nossos estudantes, pelas omissões e/ou distorções (quase sempre as duas coisas) reproduzidos em livros, conteúdos e procedimentos pedagógicos.


Educadores demandavam cursos a respeito desses temas. Além da busca de enriquecimento intelectual, valia a pena mergulhar naquele magma de vivências (“saber” é pouco-só vale se for vivência) de que se ouve falar! Seria bom demais encantar aulas com a sensibilidade e profundidade que extravasa em conhecimentos e mitologias, cores, cânticos e sonoridades, danças e movimentos, jeitos e trejeitos, no imaginário recheado de significações inconsúteis! Mas ansiavam, também, por preparo para lidar com situações “constrangedoras”, “conflituosas”, “difíceis”, etc, geradas por “incompreensões” e “brincadeiras”: manifestações de preconceito e discriminação racial no cotidiano escolar. Por que não se falava “disso” na formação de professores? Só excepcionalmente e desafiadoramente um-a ou outro-a professor-a, versado-iniciado-a, tomava a iniciativa e promovia palestras, exposições de vídeos e de manifestações culturais, debates, etc.

Agora é Lei!

Mas atenção: não se trata de, mais uma vez, exercitar piedade. Fora com a vitimização e a auto-vitimização. A Lei não é para o negro. A Lei é para todos/as. É crucial, tanto expurgar a auto-estima rebaixada pelo sentimento de inferioridade (que aflige mais a negros-as), quanto a auto-estima inflacionada pelo sentimento de superioridade (habitualmente incorporada por brancos-as). Uma coisa não acontece sem a outra: são gêmeas e terríveis as distorções na formação da consciência social, derivadas de preconceitos e estereótipos raciais, inoculados desde tenras idades, em famílias de todas as cores, despreocupadas/desinteressadas/indiferentes à questão racial. Não existe, portanto, um problema dos negros. É perniciosa a inocência/conveniência do “branco” que se coloca “de fora”: finge que não percebe as vantagens materiais e simbólicas para os mais claros, de cabelos lisos, etc.


A Lei oferece à sociedade a oportunidade da se repensar. Esvaziar a idéia comum e imobilizadora, de que “a questão é só de classe social”, e de que são seuspróprios problemas psicológicos que criam complexos e recalques, que ainda assolam muitas crianças, jovens, homens e mulheres negras: Isso que existe, mas não é causa, e sim conseqüência do racismo.

A implementação da Lei alerta, também, para o risco de se perpetuar – agora com mais pesquisa e informações – o gueto conceitual e historiográfico que trata da trajetória da população negra. Como se História e Cultura Afro-Brasileira não fosse História do Brasil. Aqui tudo aconteceu muito mais intensamente do que em qualquer das nações mais extensas criadas no novo mundo: aqui chegou quase a metade de todos os seres humanos vindos no tráfico Atlântico; aqui começou a escravidão nas Américas e foi o último lugar onde acabou; e só aqui houveescravidão – e luta contra a escravidão – em todo o território nacional. Como pode esse peso demográfico, essa longevidade histórica, essa capilaridade territorial e cultural, ser vista nas interpretações mais influentes sobre a formação e desenvolvimento da sociedade brasileira, como meras contribuições. Toda densidade das ações, enunciações, corpos e almas da gente negra, reduzidos a apêndices, “encaixados” numa História do Brasil caiada, como ironizou José Honório Rodrigues (1964). Numa interpretação isenta de racialismo isso é incabível.


Às-aos Agentes da Lei, cabe mostrar como tudo seria diferente se a partir da república a lei tivesse sido pra valer! Ao invés disso foi vitorioso o projeto racial de nação, de Estado nacional e de sociedade. Homens de ação, pensadores e instituições mais ilustres e poderosos eram reféns das doutrinas do “racismo científico”, dominantes na Europa do século XIX: daí a colossal política pública do nascente Estado Republicano ter sido racial – a imigração: foram trazidos para o Brasil mais imigrantes europeus em pouco mais de 35 anos, quanto africanos em 350 [1]. Como não explicitar a evidência de que as classes dirigentes pretendiam “lavar a mancha negra”, “depurar o mascavo nacional [o sangue negro]”, realizar uma “redução étnica” ou um “genocídio pacífico” – em outras palavras, substituir a população negra como mais forte marca demográfica, social e cultural?[2]. Não é pouco o trabalho das-dos Agentes da Lei. Sua práxis se inscreve em novo tempo: Pelourinhos, mordaças, correntes, dores sem fim, fechamentos, resistências e reatividades, já tiveram seus usos para a dominação e para as denúncias e lutas contra a dominação. Hoje são outras as ferramentas da dominação e outras serão as de efetiva libertação. Celebrar o presente e a ação transmutando tudo que já há em Cultura de Consciência Negra: superação permanente, deliberada e consistente dos preconceitos, estereótipos, lugares concedidos, favores, concessões, “reconhecimentos” – sem limites raciais aos sentidos de Justiça Social, Cidadania, Democracia.


[1]Decreto-lei n° 528. 28.06.1890. “É inteiramente livre a entrada nos portos da República, dos indivíduos válidos e aptos para o trabalho, que não se acharem sujeitos à ação criminal de seu país, exceptuados os indígenas da Ásia e da África.” Constantino Ianni (1966) fala em cerca de 4 milhões, maioria italianos.


[2]Trabalhos como os de SEYFERTH e VAINER, citados, mostram a centralidade do racialismo no pensamento social brasileiro, e na política de imigração colonização entre os finais do século XIX e meados do século XX.

Bibliografia:


IANNI, Constantino. Homens sem paz: os bastidores da emigração italiana. Editora Civilização Brasileira.RJ. 1966.

RODRIGUES, José Honório. Brasil e África Outro Horizonte. Civilização Brasileira. RJ. 1964

SEYFERTH, Giralda. Construindo a nação: hierarquias raciais e o papel do racismo na política de imigração e colonização. In Raça, Ciência e Sociedade. CHOR MAIO, Marcos e VENTURA SANTOS, Ricardo. FIOCRUZ/CCBB. RJ. 1996

VAINER, Carlos. Estado e raça no Brasil: notas exploratórias. Estudos Afro-Asiáticos n° 18. RJ. 1990

Amauri Mendes Pereira

Prof. de Sociologia da UEZO-RJ

amauripereira1@uol.com.br

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