HOUVE UM TEMPO em que os adultos diziam às crianças que elas deviam estudar para “ser alguém na vida". Hoje, se ainda há os adultos que fazem tal coisa, fazem-no por hábito, não mais por convicção. Esse conselho era dado a qualquer criança, mesmo àquelas pertencentes às melhores famílias, que tinham boa educação de berço e bons exemplos em casa; aos alunos mais bem comportados, inteligentes e moralizados. É que “ser alguém na vida" não tinha a ver, necessariamente, com os valores intrinsecamente humanos. Era uma referência direta ao prestígio social. Nesse caso, os valores que se tinham em mente ao se falar sobre “ser alguém na vida" eram os valores financeiros. “Ser alguém na vida" era conseguir uma boa profissão. Nas relações sociais, a profissão era, e é, mais importante do que a própria pessoa. Se alguém lhe pergunta “O que você é” e você responde: “sou médico”, ou “sou carroceiro”, ou “sou deputado”, aí já vai se definido claramente se você é ou não é alguém na vida. Os valores eminentemente humanos de um indivíduo não estão, necessariamente, ligados à profissão que ele tem ou ao seu grau de escolaridade, mas, nas relações sociais, é isso que "manda". É basicamente porque a profissão tem essa responsabilidade sobre o significado existencial de um indivíduo sobre a face da terra, que os pais que amavam seus filhos lhes diziam, naquele tempo remoto: “Estuda, meu filho!” Assim, por força desse argumento, muitas crianças estudaram e realmente se tornaram alguém na vida. Mas isso já faz tanto tempo! A realidade, hoje, é outra. Há muita gente estudando até além da conta e, mesmo assim, continua não sendo ninguém na vida. Há uma multidão de diplomados com seus diplomas envelhecendo dentro de uma mala de papelão, sem ter o que fazer com eles. Na infância, o meu pai era um menino que se destacava pela sua inteligência, pois sabia fazer conta na cabeça como ninguém conseguia. Mas ele não chegou a estudar em escola, porque isso era um luxo muito grande naquela época. Pouco depois a meninada começou a ir para a escola, e quem fazia as quatro primeiras séries do ensino primário tinha um bom título acadêmico nas mãos. Aí, veio uma época em que quem cursava o Ensino Fundamental completo era um privilegiado, e quem tirava o diploma de “segundo grau” (Ensino Médio) era doutor. Frequentar uma Faculdade, desde que esta foi fundada em 1088, na Itália, até há pouco tempo, na década de 1980, era apenas um sonho, e que a maioria das pessoas preferia nem sonhar para não gastar o pensamento com coisas decididamente impossíveis. Mas, no final do século XX, aconteceu uma revolucionária convergência de interesses: Todo mundo queria entrar na Faculdade, e a Faculdade queria colocar todo mundo dentro dela. É que a tendência do sistema educacional era transformar o ensino em um gigante e lucrativo mercado. Faculdades particulares começaram a ser fundadas em todos os cantos do país e, não passou muito tempo, todas elas se abarrotaram de alunos. Na condição de “produto” da grande feira pós-moderna, o ensino, que no passado era buscado com sacrifício pelos estudantes, agora busca alunos. Passaram a existir os marketeiros que “vendem” as vagas nas Faculdades. Oferecem-nas em escolas de Ensino Médio da mesma forma como se oferece qualquer outra mercadoria. Apresentam condições de pagamentos as mais variadas, os descontos, os brindes, as promoções. E assim, estando o ensino enquadrado na mesma lei de mercado que rege qualquer outro produto, o aumento da oferta lhe impôs o barateamento, massificando, desse modo, sua aquisição pelos estudantes. Já, aqui, o termo “estudantes” começa a cair em desuso. Desse momento em diante, as faculdades, bem como as escolas particulares, pelo seu modo de recrutar e tratar os alunos, os encaram, precipuamente, como “clientes”, e não propriamente como estudantes. No século XXI, todo mundo tem diploma. Assim como os cientistas elegeram a década de 1990 como a “década do cérebro”, os educadores poderiam, com muita razão, rotular a década de 2000 como a “década do diploma”. E nesses tempos em que as leis que regem a Educação não são apenas as de Diretrizes e Bases, mas também (e especialmente), as leis de mercado, o valor dos estudos começou a ser medido pela dinâmica comercial: Como a lei de mercado confere valor àquilo que é raro e torna desprezível aquilo que existe em grande quantidade, diploma tornou-se uma coisa que não vale quase nada, ou nada, a partir do momento em que todo mundo passou a tê-lo. Exagero? Não. Os fatos atestam. Hoje em dia assistimos a certas bizarrices, como, por exemplo, o concurso público para garis, no Rio de Janeiro, em outubro de 2009, no qual, entre os candidatos que disputavam as oportunidades de se agarrarem a um cabo de vassoura, estavam inscritos 45 indivíduos com título de Doutorado, 22 com título de Mestrado e mais de mil (!) com formação em Nível Superior completo. E para deixar bem claro que não é a profissão de gari que está se elevando no statussocial, mas, sim, os títulos acadêmicos que perderam o seu valor, o jornalista da TV Bandeirantes, Boris Casoy, ao ver dois garis aparecendo numa chamada televisiva, desejando feliz Ano Novo, disse para todo o Brasil escutar: “Que merda... dois lixeiros desejando felicidades do alto de suas vassouras... dois lixeiros... o mais baixo da escala do trabalho" (grifos nossos) (Jornal da Band, 31 de dezembro de 2009). Até aqui escrevi sobre o fato de o ensino ter virado uma grande feira. Mas a degeneração da Educação não para por aí. A Educação neste país pode estar inaugurando (oficialmente) uma nova fase de sua decadência: O deputado mais votado do Brasil nas eleições de 2010 foi um palhaço profissional, conhecido como Tiririca. Mal ele se apresentou à Câmara, e foi logo indicado para integrar a Comissão de Educação e Cultura. Em outras palavras, isso parece insinuar que a Educação pode estar se tornando um grande circo. Por tudo isso é que, no girar da história, aquele conselho tão bem intencionado de nossos pais sobre estudar para “ser alguém” na vida perdeu totalmente o seu sentido e a sua verdade. Hoje, a voz que nos aconselha o estudo sussurra frágil e desanimada, ao mesmo tempo em que ruge uma outra voz, muito mais robusta e cheia de escárnio, que pergunta: Estudar pra quê? |
Jose Fernandes Esta obra está licenciada sob uma Licença Creative Commons. Você pode copiar, distribuir, exibir, executar, desde que seja dado crédito ao autor original (Artigo de autoria do escritor José Fernandes, publicado no site www.escritorjosefernandes.com, em 23/04/2011.). Você não pode fazer uso comercial desta obra. Você não pode criar obras derivadas. Acompanhem os textos e demais trabalhos do autor pelos seguintes links: |
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domingo, 24 de abril de 2011
Estudar pra quê?
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