Memorial em homenagem a Martin Luther King Jr. emociona comunidade negra nos EUA.
Washington D.C - O som não chega ao fundo do imenso parque nos arredores de onde está sendo inaugurada a estátua do primeiro negro no mais importante memorial dos Estados Unidos, o National Mall. A multidão, revoltada, reclama em coro “Não dá para ouvir nada!”, os técnicos de som tentam ajustar o problema. “Isso é boicote do Tea Party”, grita alto uma senhora negra. O comentário provoca risos. A piada é perfeita para a situação, afinal o Tea Party é um movimento de extrema direita que vem ganhando força política nos últimos anos, tornando-se um dos mais radicais opositores do presidente Obama.
O dia é histórico. Depois de mais de 40 anos do assassinato do maior líder da história recente dos EUA, finalmente Martin Luther King Jr. teve seu legado reconhecido. Hoje, 16 de outubro de 2011, ele é legitimado no panteão dos heróis da nação estadunidense.
O monumento de 9 metros é composto da imagem do pastor em relevo, dentro de uma rocha, em referência a um dos seus famosos discursos, no qual usou uma metáfora para explicar a luta pelos direitos civis “fora da montanha do desespero, uma rocha de esperança”.
O local escolhido é bastante especial. Somente os chamados “pais da nação” têm sua imagem naquele espaço. George Washington, Thomas Jefferson, Abraham Lincoln e Franklyn Roosevelt - todos ex-presidentes-, agora dividem sua glória com aquele que mudou a história do país, que até a década de 60 ainda tinha banheiros separados para negros e brancos.
No palco, autoridades e ativistas dividem o espaço para fazerem sua saudação para as mais de 50 mil pessoas que estiveram presentes na manhã de outono em Washington D.C. A multidão é majoritariamente negra. São jovens, adultos e idosos. Alguns até mesmo conheceram o Dr. King, ou assistiram pela TV a notícia do assassinato do pastor que à época tinha apenas 39 anos. Muitos inclusive participaram da rebelião que ocorreu em várias partes do país após a informação que o líder do movimento fora assassinado por motivo político.
Na mesma Washington onde a estátua de King está sendo inaugurada, vários bairros ficaram completamente destruídos pela revolta popular e só foram reformado recentemente,-no final dos anos 90 - para a chegada da classe média branca (e expulsão dos negros, latinos e pobres) no processo conhecido em inglês como “gentrification”.
Vermelho, verde e preto são as cores das bandeiras que estão sendo vendidas na multidão por 3 dólares. A bandeira é o símbolo da “Black America”, diz o vendedor. A senhora de cabelo grisalho também está emocionada com o dia histórico e compra o broche com a inscrição “Memorial Martin Luther King: eu fui!”. Perto dali dezenas de turistas, em sua maioria asiáticos, buscam o melhor ângulo para tirar foto da Casa Branca, parecem não entender bem o que está acontecendo na chocolate city - Washington D.C tem uma das maiores concentrações de negros dos EUA.
Apesar de histórico, o evento foi controverso, tinha sido adiado por conta de um inesperado furacão que atingiu a costa leste dos EUA há aproximadamente dois meses. A poetiza Maya Angelou reclamou da frase, artistas questionaram o fato do escultor não ser afro-americano – o artista Lei Yixin, autor da obra, é chinês.
De fato, o dia 28 de agosto era a data exata onde a poucos metros de onde está o monumento, há 43 anos, Martin Luther King Jr fez seu mais famoso discurso, que apesar de ser chamado “Eu tenho um sonho”, na verdade, não tinha um título definido. Segundo a versão dos que estavam presentes no dia, a parte do sonho foi um improviso que havia ocorrido depois de uma pessoa do palco, amiga de King, instigar o carismático orador a falar se seus sonhos.
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Milhares de pessoas estão sentadas em cadeiras de aço providenciadas pela produção do evento, algumas pessoas, entretanto, não quiseram arriscar e trouxeram as suas de metrô. A distância estre a estação e o monumento é longa, mas parece valer a pena. Essas pessoas já doaram alguns dólares para construção do projeto, que custou US$ 120 milhões, ver a obra final e o discurso do presidente é o que motiva a caminhada.
A maioria está com um boné branco que ganharam na entrada do evento. Na parte frontal lê-se: Martin Luther King Jr, a vida, o sonho e o legado. Já na parte de trás a marca do patrocinador, Tommy Hilfiger, a famosa grife de luxo que tenta reverter um suposto spam que circula há anos na internet no qual o dono da empresa teria dito que não criou a marca para negros usarem. O estilista já foi ao programa de Oprah Winfrey desmentir o boato, que ainda circula em caixas de e-mail de todo mundo, mas a imagem ficou. A repercussão negativa do caso provavelmente fez com que a empresa decidisse apoiar o histórico evento.
Discursos
O clima de calmaria muda complemente quando o microfone é passado para um dos maiores ativistas negros contemporâneos, o reverendo e comunicador Al Sharpton. “Nós não estamos aqui por causa do Obama, estamos aqui por causa de nossas mamas”, grita ironicamente o ex-candidato a prefeito de Nova Iorque, referindo-se a necessidade de dar continuidade ao legado de King, Rosa Parks e de outros heróis da luta pelos direitos civis nos EUA.
Outro que faz discurso inflamado é o pastor Andrew Young que acaba de lançar um canal de TV em sinal aberto. “We left the outhouse to come to the White House”, a forte frase que perde a rima em português, faz alusão ao fato de que antigamente as casas possuíam um anexo que era usado apenas para serviçais, com banheiro separado para negros, porém hoje um negro ocupa a Casa Branca.
Sharpton e Young são parte do grupo de líderes negros que continuam apoiando o primeiro presidente afro-americano da história, assim com a maioria dos presentes. Porém, não tem sido assim com todos que declararam suporte a Obama em 2008.
Al Sharpton
Influentes líderes como o filósofo e professor da famosa Princeton University, Cornel West e o comunicador Tavis Smiley estão cobrando publicamente mudanças no país que vê sua economia sendo deteriorada, a classe média empobrecendo e uma comunidade negra com nível de desemprego de 17.2%, chegando até mesmo a 20% em alguns estados.
Críticos dizem, entretanto, que a verdadeira razão para o rompimento público desses líderes teria sido o distanciamento que o outrora amigo pessoal tomou após assumir o posto de presidente. “Eu acho que ele tem mantido distância de mim. Não há dúvidas que ele não quer ser identificado com um negro esquerdista. Eu estou falando de uma ligação, cara. Isso é tudo...uma ligação particular” disse o escritor Cornel West ao New York Times em julho desse ano. Seja como for, o descontentamento com a crise econômica e o desemprego é percebido em todas as partes do país. Na tarde desse domingo Cornel West foi preso depois de se recusar a sair das escadas da Suprema Corte em Washington durante o protesto "Ocupe D.C". Apesar de ter sido preso pela polícia local, o fato deve esquentar mais ainda o debate Cornel X Obama.
Emoção
O projetor começa a exibir uma imagem que causa frisson no público presente. O casal Obama aparece com suas filhas. Berenice King e Martin Luther King III, filhos do líder negro, seguem ao lado do presidente. Um coral gospel canta “glória, glória, aleluia” ao estilo das igrejas negras do Harlem. Na platéia uma senhora grita “amém”. Não é um culto evangélico, mas para os negros americanos política e fé parecem ser coisas indissociáveis. Foi assim com Marcus Garvey (Católico), Malcom X (mulçumano) e o próprio Martin Luther King (evangélico).
Obama inicia o discurso e é interrompido pela multidão que grita “mais quatro anos, mais quatro anos!”. Um manifestante surge na multidão descontrolado, gritando palavras desconexas contra o presidente e é “convidado a se retirar” pelo forte esquema de segurança. A multidão aplaude a iniciativa.
Obama, que está em outro palco, por motivos de segurança, não vê a confusão e segue seu discurso evocando o legado de Dr. King. “É importante nesse dia lembrarmos que o progresso não chega facilmente (…) Nós nos esquecemos, mas, durante sua vida, Dr. King nem sempre foi considerado uma figura de unidade. Ele (King) foi atacado até mesmo pelo seu próprio povo, os que achavam que ele estava indo rápido demais ou os que achavam que ele estava muito devagar”.
Ainda lembrando-se da mensagem política de Luther King, Barack Obama surpreende ao dar apoio indireto ao movimento que vem questionando o poder das corporações. “Se estivesse vivo hoje, ele (Martin Luther King) iria nos lembrar que o trabalhador desempregado está certo em questionar os excessos de Wall Street, sem demonizar todos os que trabalham lá”. A frase é uma referência ao movimento “Ocupe Wall Street”, que começou com uma pequena manifestação de movimentos antiglobalização, anarquistas e hackers e hoje já ganhou apoio de figuras como os escritores Noam Chomsky, Naomi Klein, o cantor Kanye West e está espalhado por todo o país. A questão é se o movimento vai ter fôlego e organização para se tornar um espécie de Tea Party de esquerda, capaz de influênciar as próximas eleições.
Stevie Wonder encerra a cerimônia. Antes dele, o público já havia assistido a performance de Aretha Franklin, que também cantou na posse de Obama, em janeiro 2009, quando o país ainda estava repleto de esperança.
Poder econômico
Na platéia, um senhor negro de 84 anos contempla a música. Sentado, com as pernas cruzadas, ele está vestido de maneira muito especial. Chapéu panamá, lenço vermelho no paletó e suspensório. Ele veio do Alabama, sul do país, chegou sozinho, só para prestigiar o evento. Entre seus amigos está o homenageado do dia de quem foi companheiro na Marcha sobre Washington por Trabalho e Liberdade, em 1963.
“Conheci todos eles: King, Rosa Parks e outros que você nem vai saber quem é”, diz o pastor Al Dixon. Mas, é ao falar da questão econômica que o senhor Dixon mostra sua paixão e revela: “Dr. King tinha muita preocupação com o desenvolvimento econômico da comunidade negra. “A luta de King era por ‘silver’ rights, não somente por ‘civil’ rights”. Fazendo uma referência a necessidade da comunidade negra ter acesso ao capital financeiro.
Al Dixon possui um abrigo para centenas de pessoas e é proprietário de jornal na cidade de Tuskegee. Para ele, o problema com o desemprego na comunidade negra tem um motivo, a falta de empreendedorismo da juventude negra. Depois da integração na sociedade branca, os afro-americanos teriam perdido seus negócios com a ilusão de que poderiam trabalhar para as grandes corporações. “Hoje o jovem entra na universidade, pega o diploma e quer ser empregado nas empresas dos brancos, nas grandes corporações. Eles deveriam buscar ser proprietários de negócios. Antes pelo menos tínhamos hotéis, jornais, clubes, agora não temos nada”.
Eleições
O plano de Obama para esse ano é aprovar na Câmara e Senado uma pacote que irá investir US$ 447 bilhões para criação de postos de trabalho. Caso consiga aprovar o plano e gerar empregos até as próximas eleições marcadas para novembro de 2012, o primeiro presidente negro dos EUA conseguirá se re-eleger, dizem os analistas. A tarefa não é simples, ele tem altos índices de reprovação. A chamada “América Negra” de Dr. King encontra-se em sua pior fase. Há mais jovens negros na prisão do que nas universidades e 49% das crianças negras nascem em lares em situação de vulnerabilidade e pobreza. A esperança foi substituída pelo ceticismo.
Obama, na avaliação de ativistas, não teria cumprido promessas importantes de campanha, apesar de ter avançado em questões como a representatividade no governo, direitos da comunidade LGBT, o aumento dos impostos das maiores fortunas e a reforma no sistema de saúde. Já oposição republicana comemora o desgaste de Obama. As bases para a sua volta triunfante para a Casa Branca estão preparadas. Se depender dos republicanos, e do Tea Party, o sonho de King ficará adiado por mais algum tempo, mesmo com monumento no National Mall e status de herói nacional.
Veja galeria de fotos do evento - http://flic.kr/ps/23KTdb
- Paulo Rogério Nunes, de Washington D.C, especial para o Correio Nagô.
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