Assim como a “invisibilidade” dos negros e das comunidades quilombolas constituiu um traço histórico marcante da realidade racial no Brasil, a invisibilidade do crime de lesa-humanidade praticado por traficantes brasileiros permanece ignorada até o presente.
Discutir a escravização de negros no país é direito de uma sociedade de maioria afrodescendente
Foto: Jean Batiste Debret/Reprodução
O presente artigo tem por objetivo chamar a atenção sobre a atualidade política do regime escravista no Brasil e a responsabilidade histórica do Estado no tráfico transatlântico de escravos e na escravização de africanos ao arrepio da lei durante o Império. Com efeito, após a promulgação da lei de 1831, que proibia o tráfico de africanos para o Brasil e a escravização após a data, o país independente permitiu sua continuidade. De navios negreiros portando bandeira brasileira, ainda desembarcaram e foram escravizados 760 mil africanos, segundo estimativa de Alencastro (2010), e traficantes e senhores de escravos tiveram assegurada sua impunidade durante décadas, subjugando ilegalmente gerações de escravos até 1888.
Essa impunidade fundadora das elites imperiais tem reflexos na estrutura social e em formas de dominação política que prevalecem até os dias atuais. Assim como a “invisibilidade” dos negros e das comunidades quilombolas constituiu um traço histórico marcante da realidade racial no Brasil, a invisibilidade do crime de lesa-humanidade praticado por traficantes brasileiros permanece grandemente ignorada até o presente. Nesses tempos em que se reconhece e se discute o direito à memória e à verdade acerca das violações de direitos humanos nos períodos ditatoriais recentes, a Nação precisa tornar-se ciente de que o tráfico abjeto e o regime escravista foram em larga medida obra de nossos conterrâneos.
Hoje, esse salto evolutivo em nossa memória histórica é não somente necessário, mas emergente, graças à amplitude e lucidez da nova política africana desencadeada pelo governo Lula, o “mais africano dos presidentes”, no dizer do ex-ministro de Relações Exteriores Celso Amorim. Em 2011, comemoram-se dez anos da Conferência Mundial contra o Racismo, a Discriminação Racial, a Xenofobia e as Formas Conexas de Intolerância, realizada em Durban, na nova África do Sul, em agosto e setembro de 2001. Em sua memorável resolução final, a conferência reconheceu que “a escravidão e o tráfico de escravos, incluindo o tráfico transatlântico de escravos, foram tragédias terríveis na história da humanidade, não apenas por sua barbárie abominável, mas também em termos de sua magnitude, natureza de organização e, especialmente, pela negação da essência das vítimas”; reconheceu ainda que “a escravidão e o tráfico de escravos são crimes contra a humanidade e assim devem sempre ser considerados, especialmente o tráfico transatlântico de escravos, estando entre as maiores manifestações e fontes de racismo, discriminação racial, xenofobia e intolerância correlata...” Durban foi um marco que galvanizou em todo o mundo novos entendimentos e posturas, bem como movimentos sociais e políticas públicas sobre a problemática racial, particularmente com respeito aos afrodescendentes, como bem o ilustra a proclamação de 2011 como o Ano Internacional dos Povos Afrodescendentes, da Assembleia Geral das Nações Unidas.
Tudo isso é imensamente relevante em nosso país. Com efeito, segundo projeções do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), devido à diferença nas taxas de fecundidade entre população branca e não branca, em 2050 três quartos da população brasileira será constituída por negros e pardos. O Brasil, este povo majoritariamente afrodescendente, tem o direito de conhecer toda a verdade sobre sua história. Ao fazê-lo, deverá reconhecer sua dívida com respeito à África, independentemente do colonialismo europeu, do qual os dois continentes foram vítimas, mas pela participação direta do Estado, pós-Independência, na pilhagem da África.
A longa abolição da escravatura
O Brasil foi o último país das Américas a libertar efetivamente seus escravos. No entanto, após a firma do tratado anglo-brasileiro de 1826, em troca do reconhecimento pelo Reino Unido da independência do Brasil, foi aprovada pela Câmara de Deputados do Império e promulgada em 1831, durante a Regência, uma lei que abolia o tráfico de escravos. Apesar dessa lei, que está na origem da expressão popular “para inglês ver”, os chamados negreiros brasileiros prosseguiram com o tráfico, servindo-se de uma rede de agentes instalados ao longo de toda a costa ocidental da África. Na verdade, com a abolição do trabalho escravo nos Estados Unidos, após a guerra da independência, o tráfico negreiro brasileiro ganhou inclusive um novo impulso, sem a concorrência de seus congêneres do Norte.
Além do tráfico, a lei de 1831 proibia a própria escravização, não somente assegurando plena liberdade aos africanos introduzidos no país após essa data como considerando sequestradores seus eventuais proprietários, sujeitos a sanções penais. Por “reduzir à escravidão a pessoa livre que se achar em posse de sua liberdade”, o Código em vigor à época impunha aos infratores uma pena pecuniária e o reembolso das despesas com o reenvio do africano sequestrado para qualquer porto da África.
Pouco depois, em 1845, o governo britânico decretou o Bill Aberdeen, que proibia o tráfico de escravos entre a Europa e as Américas e autorizava a Marinha a aprisionar navios negreiros, mesmo, no caso, quando navegassem em águas territoriais brasileiras, provocando pânico, segundo se diz, em traficantes e proprietários de escravos e de terras no Brasil. Para a Grã-Bretanha, potência hegemônica no período, o tráfico tinha deixado de ser rentável, tornando-se um obstáculo a suas necessidades de expansão imperialista e de conquista de novos mercados, embora suas reais motivações se ocultassem sob o véu de razões filosóficas e humanitárias.
Apesar do forte sentimento antibritânico gerado na alta sociedade imperial, o governo brasileiro viu-se obrigado a aprovar uma nova lei em 1850, dita lei Euzébio de Queiroz, que extinguia o tráfico transatlântico para o Brasil e autorizava a apreensão dos negros “boçais”, assim chamados os escravos recém-chegados que não dominavam o português. Mas, em contrapartida, a lei ignorava os escravos que haviam chegado ao país desde o tratado de 1826 e a lei de 1831, concedendo, de certa forma, um indulto aos infratores.
Com esse gesto inaugural de impunidade, que se incrustaria a posteriori na sociedade brasileira, o governo “anistiava”, a partir de 1850, os culpados pelo crime de sequestro de africanos, fazendo vistas grossas ao crime correlato de escravização de pessoas livres. Com isso, os quase 800 mil africanos desembarcados até 1856 – e a totalidade de seus descendentes – foram mantidos ilegalmente na escravidão até 1888, ao mesmo tempo em que aumentava o tráfico interno em direção ao Sudeste e ao Sul, que ganhavam novo dinamismo econômico em detrimento do Nordeste. Assim, boa parte das últimas gerações de seres humanos escravizados no Brasil não era escrava de jure. Ou seja, o tráfico de escravos e a escravização de africanos durante o Império não eram somente condenáveis no plano ético: eram atos ilegais cometidos pelas elites brasileiras, que permaneceram ocultos e impunes nas dobras da história dos vencedores. Paralelamente, a elevada concentração fundiária ganhava por essa via uma sobrevida e se consolidava, reforçando os fundamentos da desigualdade racial no Brasil.
O Brasil e o tráfico negreiro
O tráfico negreiro com destino ao Brasil sempre teve uma dinâmica própria. Desde o século 17 era gerido a partir de portos brasileiros, isto é, os grandes traficantes que garantiam a reprodução do sistema escravista no país estavam sediados em Recife, Salvador e Rio de Janeiro, e não em Lisboa. A partir de 1831, passou integralmente ao controle de traficantes brasileiros e seus agentes em portos da África Ocidental. Os escravos eram trazidos, acorrentados, em navios negreiros com a bandeira brasileira hasteada.1
No Império, os traficantes eram considerados empresários de sucesso e possuíam um status social elevado, armando embarcações com destino à África, servindo-se de uma rede de fornecedores e agentes comerciais em vários países e empregando muitas pessoas. Até 1831 estiveram entre os homens mais ricos do Império, com ligações estreitas com a Corte e representantes na Câmara de Deputados, além de contar com a conivência da polícia e das autoridades locais. Somente após 1850, com a Lei Euzébio de Queiroz, começaram a ser qualificados como “piratas”, tendo muitas vezes de fugir para o exterior.
No entanto, sob a proteção dos latifundiários, que como compradores de escravos jamais foram punidos, foram autorizados a voltar a viver no país já nos anos 1860 e incentivados a aplicar suas fortunas em outros negócios, como a agricultura. De certa forma, portanto, a participação de brasileiros no tráfico negreiro e as benesses que receberam fazem parte de um processo que ajudou a plasmar as elites do país nas entranhas da sociedade escravocrata brasileira.
Segundo Alencastro, “do total de cerca de 11 milhões de africanos deportados e chegados vivos nas Américas, 44% (perto de 5 milhões) vieram para o território brasileiro em um período de três séculos (1550-1856)”. Somente após 1808, com a chegada da família real ao Brasil, teria desembarcado mais de 1,4 milhão de escravos, aproximadamente um terço do total de africanos escravizados que aqui aportaram.
Grande parte da decantada prosperidade econômica do Brasil imperial se baseou nesses enormes contingentes de escravos desembarcados durante o século 19. Para citar um único exemplo, à persistência da escravatura se deveu o arranque da cafeicultura no Vale do Ribeira, em São Paulo, que converteu o Brasil no maior produtor mundial do grão e viabilizou ulteriormente a industrialização do país.
O tráfico negreiro e o trabalho escravo no Brasil contribuíram poderosamente para a acumulação mundial de capital e a expansão econômica europeia, tornando rentável a colonização da África. Em contrapartida, o continente ficou estagnado, com grande parte de sua população dizimada ou deportada e com suas sociedades desestruturadas, ao mesmo tempo em que se acentuavam os conflitos internos e as migrações massivas.
O caso de Luanda, bem documentado, ilustra as mudanças provocadas pelo tráfico nas sociedades africanas. De 1770 a 1840, seu porto permaneceu como o mais importante exportador de escravos da África Ocidental, mantendo-se nessa posição com respeito ao Brasil mesmo após a lei de 1831. Ao longo desse período, a população não só declinou fortemente como sofreu perdas significativas em sua mão de obra produtiva, para atender à demanda brasileira. Esse processo, no entanto, jamais ocorreu sem resistências. Eram frequentes revoltas e fugas de grupos de população vulnerável para o interior e a criação em meados do século 19 de “quilombos” ou “motolos”, que costumavam se armar e atacar a cidade de Luanda.
Essa rapina abjeta de seres humanos reduziu o potencial de desenvolvimento e maculou o ethos civilizatório do qual a África era portadora. Visto da perspectiva do continente africano, o tráfico de escravos não foi, portanto, uma empresa exclusiva de colonizadores europeus, mas também, e diretamente, de traficantes brasileiros atuando com o beneplácito do Estado, quando o país já havia se tornado independente.
A dimensão política de nossa dívida com a África
Quando falamos da dívida brasileira com a África, não devemos restringi-la ao incomensurável aporte dos africanos à construção da nação brasileira ou, muito menos, igualar o país a potência colonizadora. A colonização africana resultou do expansionismo europeu e, dessa perspectiva, tanto Brasil como África padecemos solidariamente dos seus males. Mais precisamente: o Brasil não colonizou a África e nós não temos por que assumir uma responsabilidade histórica que não nos cabe diretamente. A verdadeira dívida brasileira está espelhada no tráfico negreiro realizado por traficantes brasileiros, principalmente ao longo do Império, atuando ilegal e impunemente, sob a égide do Estado, ou seja, refere-se a um período histórico de pouco mais de meio século, num contexto em que o Brasil e outros países do continente americano já haviam deixado de ser colônias, tornando-se independentes.
Com efeito, foram traficantes brasileiros, em associação com grandes latifundiários, ou seja, as elites econômicas imperiais, que tomaram as rédeas do tráfico para o Brasil. Embora o país tenha evoluído, os herdeiros dessas elites, e em alguns casos seus descendentes diretos, continuam tendo um enorme peso na vida política e econômica do país. A atualidade do tráfico negreiro reside, contudo, mais além das chagas sociais que nos legou, no desafio que nos coloca sobre o imperativo de ampliar continuamente nossos horizontes democráticos e construir uma sociedade que respeite a dignidade humana.
A discriminação e o racismo contra o negro no Brasil têm na escravatura sua matriz principal e fundadora. O tráfico necessitava uma justificativa no plano ideológico, que reduzisse o “homem de cor” a um ser inferior, degradado, próprio a ser tratado como uma coisa, uma mercadoria. O racismo cresceu à medida que se expandiu o tráfico negreiro e se incrustou nas instituições brasileiras principalmente a partir do Império. Mesmo depois de abolida a escravidão, prosseguiu e prosperou, como parte de uma cultura dominante abraçada pelo Brasil independente, a mesma que tornou possível e aceitável o saque colonial, o imperialismo e, nos dias atuais, o neocolonialismo. No caso do Brasil, essa cultura ainda dominante se traduz na submissão, com frequência servil, aos interesses das classes dominantes do mundo dito civilizado.
O governo Lula inaugurou uma reviravolta nessa triste herança ao assumir a dívida histórica do Brasil com respeito à África e ao reafirmar, a um só tempo, o peso da África e dos afrodescendentes na formação social brasileira. Contrariando as pretensões primeiro-mundistas das elites tradicionais, pediu publicamente perdão aos africanos e fez da África uma prioridade para a nova inserção internacional do Brasil, mediante uma visão de largo prazo dos interesses nacionais.
Conferiu assim uma nova legitimidade e um cunho popular à política externa brasileira, valorizando o componente africano de nossa sociedade e sua contribuição decisiva para a afirmação de nossa cultura. Para a África, o Brasil do governo Lula tornou-se um poderoso aliado na conquista de maior autonomia e integração, ajudando-a a superar a situação de dependência e marginalização em que se encontra.
No plano interno, contudo, nesses tempos em que se discute o direito à verdade e à memória na perspectiva dos oprimidos, cabe ainda desvendar o quanto a forma que assumiu o escravismo no Brasil determinou seu desenvolvimento ulterior e, em particular, por que o país permanece como a única grande economia agroexportadora que não realizou uma extensa reforma agrária.
O ocultamento da verdade com respeito ao papel de brasileiros no tráfico negreiro contribui também, certamente, para a perpetuação do trabalho escravo no Brasil até o presente, esse crime de lesa-humanidade, considerado imprescritível pela Constituição de 1988. Segundo o Ministério do Trabalho e Emprego, de 1995 até agosto de 2010, foram resgatados quase 38 mil escravos. Por sua vez, a Comissão Pastoral da Terra estima que cerca de 25 mil brasileiros se tornam escravos a cada ano, passando a viver em barracões de chão batido, separados da família e subjugados por dívidas impagáveis e crescentes.
Segundo Monteiro Filho, da ONG Repórter Brasil, que se especializou no trabalho escravo contemporâneo, “os empregadores que utilizam mão de obra escrava são, na maioria das vezes, grandes latifundiários (...) quando não são congressistas, membros dos Legislativos estaduais ou do Poder Judiciário”. De acordo com o autor, “a maioria dos casos de utilização de mão de obra escrava é registrada... nas fazendas de gado”. O Brasil, como maior produtor e exportador de carne bovina do mundo e grande produtor agrícola, tem no poderoso agronegócio a marca do trabalho escravo contemporâneo.
Assumir a responsabilidade histórica pela enorme dívida que temos com a África não é, portanto, uma atitude passadista, porém tem um claro rebatimento em componentes estruturais de nossa realidade como nação e em alguns de nossos principais desafios atuais. Esclarecer e discutir esse tema representa um direito da sociedade brasileira e de sua maioria afrodescendente em especial. A política externa e a de cooperação com a África precisam incorporar continuamente tal dimensão como fundamento incontornável de enfoques inovadores e emancipatórios, baseados no respeito à dignidade e à liberdade humana.
Luiz Carlos Fabbri é economista, trabalhou como funcionário internacional em vários países africanos de 1978 a 2000
Matilde Ribeiro é assistente social, foi ministra da Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (2003-2008)
Referências
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