por Andréia Lisboa de Sousa*
Se refletirmos um mínimo sobre a questão, não teremos dificuldades em perceber o queo sistema de ensino destila em termos de racismo: livros didáticos, atitude dos professores em sala de aula e nos momentos de recreação, apontam para em processo de lavagem cerebral de tal ordem que, a criança (…) já não mais se reconhece como negra. E são exatamente essas “exceções” que, devidamente cooptadas, acabam por afirmar a inexistência do racismo e de suas práticas. Quando se dá o caso oposto, isto é, de não aceitação da cooptação e de denúncia do processo [de] super-exploração a que o negro é submetido, surge imediatamente a acusação de ‘racismo ás avessas’. (Lélia Gonzalez, 1979)
A intelectual e ativista negra Lélia Gonzalez, uma de nossas Candaces** brasileiras, nos lembra que historicamente no Brasil negros e negras encontram-se em desvantagem nos sistemas de ensino, assim como nas demais agencias do bem estar social. Nossos dois últimos presidentes, FHC (1994-2001) e Lula (2002-2010) reconheceram a existência do racismo que assola não somente o tecido social como o indivíduo e suas relações interpessoais. Todavia, nesse Dia internacional de enfrentamento à violência contra as Mulheres em 2010, quais são as perspectivas colocadas para as mulheres e meninas negras brasileiras? Mostra-se bastante significativo o investimento na manutenção do papel da mulher negra como um ser pouco inteligente, relegada apenas a exercer o trabalho doméstico, sendo comandada por uma mulher branca. Seria a imagem da empregada doméstica, sem escolarização, caricaturizada, animalizada, beiçuda e macaca de carvão o único lugar que a sociedade reserva e consegue permitir como de visibilidade à mulher negra?
Observamos que, recentemente, em 2006, fomos induzidos a pensar que houve avanço na política dos programas de livros do Ministério da Educação (Programa Nacional Biblioteca na Escola/PNBE, Programa Nacional do Livro Didático/PNLD e Programa Nacional do Livro do Ensino Médio/PNLEM) no sentido de contemplarem o princípio do respeito à diversidade etnorracial. Os editais dos referidos programas expressam categoricamente que: “serão excluídas as coleções que não obedecerem aos seguintes estatutos (…)” (Edital do PNBE/2010); “Serão sumariamente eliminadas as obras que não observarem os seguintes critérios (...)” (Edital do PNLD 2010) e “Todas as obras deverão observar os preceitos legais e jurídicos (...)” (Edital PNLEM 2007).
Todos eles citam, dentre outros dispositivos legais, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional e suas alterações, o Parecer CNE/CP nº 003/2004, de 10/03/2004 e a Resolução CNE/CP nº 1, de 17/06/2004, que dispõem sobre as Diretrizes Curriculares para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana. O PNBE cita o Estatuto da Criança e do Adolescente e os dois últimos ainda citam a “Lei nº 10.639/2003”, que tornouobrigatório o ensino de Historia e Cultura Afro-Brasileira no currículo escolar. O PNBE explicitamente informa que obras que veiculem “estereótipos e preconceitos de condição social, regional, étnico- racial, de gênero, de orientação sexual, de idade ou de linguagem, assim como qualquer outra forma de discriminação ou de violação de direitos (…)” serão excluídas. Diante desse jogo político, é evidente que os editais sofreram alterações em suas redações, mas não foram capazes de alterar o olhar do/da avaliador/a e, por conseguinte, não alterou o processo e as formas de avaliação e seleção de livros racistas e discriminatórios. Desse modo, em 2010, infelizmente nos deparamos com o descumprimento dos critérios de exclusão das obras submetidas ao processo de avaliação dos referidos programas, uma vez que tanto as regras do edital quanto o posicionamento político do MEC contrariam o que foi proposto e divulgado em seus respectivos editais. Por isso, houve a necessidade de se elaborar o parecer CNE/CEB Nº: 15/2010, orientando sobre a situação e as atentando para implicações da seleção do livro: “As caçadas de Pedrinho”de Monteiro Lobato, dado seu conteúdo discriminatório.
O que há por trás de uma gestão de política de livros que faz alterações em seus editais e as divulga fazendo parecer que está cumprindo as leis, mas que no entanto, na prática, produz um efeito totalmente contrário? O que há por de trás dos cartéis editoriais brasileiros, controlados por algumas corporações européias, que submetem livros racistas para a seleção dos programas do MEC. É assim que a supremacia branca evidencia seu poder social, pois mesmo tendo ciência das regras de seleção de livros, ela submete e tem selecionado (aprovado) livros com conteúdos racistas. Na verdade, esse programas de livros são utilizados como aparelhos ideológicos estatais que, dessa forma, mostram-se eficientemente à serviço da produção, reprodução e reforço de práticas discriminatórias contra, principalmente, a menina, a jovem e a mulher negra.
Apesar dos esforços de entidades que trabalham com direitos humanos, entidades negras, de educadoras/es e de pesquisadoras/es negras/os em prol do combate ao racismo e ao preconceito, o livro “As caçadas de Pedrinho” sem qualquer avaliação rigorosa no que diz respeito, especificamente, à temática racial foi aprovado pelas/os avaliadoras/es do Programa Nacional de Biblioteca na Escola (PNBE). Cabe então perguntar: quem são esses avaliadores? Quantos especialistas negros, especializados em literatura infanto-juvenil fazem parte da equipe de avaliação? Quais mudanças efetivas ocorreram na política do Programa Nacional Biblioteca na Escola, após a aprovação doParecer CNE/CP nº 003/2004, de 10/03/2004 e da Resolução CNE/CP nº 1, de 17/06/2004?
Como a temática etnorracial está sendo implementada nas instâncias internas e externas do MEC? Como a política orçamentária é planejada para a realização de programas de capacitação e como os cursos de capacitação da Secretaria de Educação Básica têm preparado nossas/os profissionais de educação para lidar com a educação para a igualdade racial? Necessitamos que nossas/os especialistas negras/os não só sejam parte integrante das equipes que compõem esses programas, mas que sejam os gestores (coordenadores) dos mesmos para que uma política de inclusão e diversidade etnorracial se concretize de fato. Necessitamos também de especialistas em materiais pedagógicos sobre essa temática integrando o mercado editorial, principalmente nas editoras que submetem seus livros aos programas de livros do MEC.
Como podemos entender como normal a compra de livros que veiculem abertamente a identificação de “macaca de carvão” com explicitado em “As caçadas de Pedrinho”para pessoas negras? Se o fato de uma personagem que é apontada como “macaca de carvão” não se enquadrar na definição de estereótipo e estigma, teremos que mudar toda a literatura acadêmica sobre o tema.Goffman, Bendelow, Gillian and Williams, Ana Célia da Silva, Esmeralda Negrão, Fúlvia Rosemberg,Regina Pahim Pinto, Edith Piza, dentre outras que já evidenciaram em seus conhecidos estudos o quanto o preconceito e o estereótipo são nocivos para crianças e adolescentes. Portanto, os estudos acadêmicos de referência para o tema não mais servirão para nortear novos estudos e análises.
Se o MEC não cumpriu a meta de formação de professores, se as universidades não instituíram disciplinas para a educação das relações raciais, salvo algumas exceções, de onde vem a certeza de que nossos professores estão preparados para - após o contato da criança com um texto preconceituoso que já implicou em seu auto-conceito e auto-imagem - dar-lhe novos elementos para a não cristalização e superação desses estereótipos? Por que sujeitar nossas crianças negras ao exercício tão doloroso de ler: "Tia Nastácia, esquecida dos seus numerosos reumatismos, trepou na árvore que nem uma macaca de carvão”? Por que optar pela distribuição de um livro que comprovadamente é um atentado à da imagem da mulher negra: “... nem Tia Nastácia, que tem carne preta"? Por que investir na imagem destrutiva, chocante, terrorist : "… aves, desde o negro urubu fedorento até essa jóia de asas…” para depois apostar que a/o educadora/or “trabalhará” isso em sala de aula adequadamente?
Sem sombra de dúvidas, esse contexto só vem a demonstrar que as tradicionais artimanhas das tecnologias de poder, aplicadas por grupos conservadores (a tal intelligentsia “branca” brasileira)só conseguem olhar e desejar políticas para si mesmos. Desta forma, mantêm sua supremacia econômica às custas da manutenção de livros por meio de dinheiro público, veiculando assim uma ideologia racista, travestida de textos estereotipados, achincalhadores e vilipendiosos em relação à personagem negra. Ora, o que podemos claramente perceber é que os gestores, técnicos e outros responsáveis por esse programas não levam a sério a legislação brasileira e mais ainda uma educação anti-racista para todas e todos.
Cacemos sim esse racismo à brasileira e toda e qualquer obra que fere os direitos humanos e o princípio de uma existência com dignidade. Questionemos os gestores públicos que brincam com a educação brasileira e não implementam uma educação anti-racista, anti-sexista e anti-homofóbica em seus programas. Cacemos sim a supremacia branca, disseminada em posições de poder nas instâncias do governo, que desvia o foco das discussões sobre desigualdades e direitos das/os negras/os. Transformemos essa política econômica de faz de conta, mas que não faz de conta quando o assunto é PODER, ELABORAÇÃO, AVALIAÇÃO e DISTRIBUIÇÃO DE LIVROS.
O MEC e os sistemas de ensino devem rever a política de avaliação e seleção dos programas de livros, objetivando a participação de pesquisadores que trabalhem com as populações vítimas da discriminação e estereótipos nos materiais pedagógicos, determinando a participação de pesquisadores que trabalhem com as populações vítimas da discriminação e estereótipos nos materiais pedagógicos durante todo o processo. Caso contrário, não conseguiremos viver em uma sociedade democrática em que os excluídos possam ler livros com histórias complexas, belas, valorativas, diversificadas, oníricas e dignas sobre si próprios. Lobato não deixou que a branca de neve, a cinderela, o Tio Patinhas fossem os únicos ícones para o imaginário infanto-juvenil de nossas crianças, jovens e adultos. Contudo, é certo que em 1930 não fazia parte de sua perspectiva a valorização da criança negra, tampouco o fortalecimento de sua auto-estima. Assim, resta-nos a crítica, a observação, a nota explicativa à obra de Lobato ou então teremos que abandonar o discurso de valorização da diversidade e de promção da igualdade no campo da educação.
Temos direito a uma literatura infanto-juvenil que coloque a personagem negra no mesmo patamar inventivo, imaginativo, onírico, inteligente, diversificado e rico que só tem favorecido historicamente a imagem de personagens brancos. Queremos que os livros enviados para as escolas públicas propiciem uma relação estética, ética e lúdica de uma auto-imagem e auto-estima positiva para as crianças e jovens negras assim como para as crianças e jovens brancos. Queremos narrativas infanto-juvenis que realmente se configurem como narrativas que enriqueçam positivamente o imaginário da/o leitora/or . Queremos narrativas, ilustrações, riquezas de tessituras que sejam lidasapropriadamente e nos deixem encantados com os mistérios e segredos, que nos preparem para lidar com os desafios da vida. Almejamos textos que propiciem honradas formas de interação e saudáveis relacionamentos para estabelecermos convivências múltiplas com os seres vivos e não vivos que fazem parte do mundo que partilhamos.
Reivindicamos que Vossa Ex., o senhor Presidente Luis Inácio Lula da Silva, o senhor Ministro Fernando Haddad, a senhora Secretária da Educação Básica Maria do Pilar Lacerda Almeida e Silvacorrijam esse erro e se comprometam com a urgente necessidade de reconhecer a existência do racismo presente em livros e materiais didáticos e combatê-los ativamente, em consonância com nossa carta magna. Outrossim, reivindicamos que vossas senhorias assumam posturas proativas, encaminhando todos os procedimentos que se façam necessários, junto ao mercado editorial, às comissões avaliadoras, aos cursos de formação de professores, entre outros.
É fato que a primeira mulher eleita presidenta da República Brasileira, senhora Dilma Roussef,sabe do impacto, dos traumas e estigmas que a volência e a tortura ditatorial brasileira imprimiu e imprime em sua vida. Há 60 anos atrás, três mulheres foram mortas violentamente durante a ditadura de Trujillo na República Dominicana. Neste dia, não queremos que nossas meninas negras candaces sejam desmoralizadas e marcadas violentamente nas salas de aulas deste país como “... uma macaca de carvão” e por outros termos racistas que já deveriam ter sido abolidos. Queremos sim que as narrativas de nossas Candaces estejam nos livros infanto-juvenis deste país.
Neste Dia internacional de enfrentamento à violência contra as Mulheres protestemos contra“As caçadas de Pedrinho”, não permitamos que uma narrativa que apela para o uso de estereótipos abomináveis, além de textos e ilustrações discriminatórias contra a imagem da personagem feminina negra marque esse dia de luta. Assine o abaixo-assinado a favor do Parecer CNE/CEB Nº: 15/2010:http://www.euconcordo.com/com-o-parecer-152010
[*] Especialista em Literatura Infanto-Juvenil. Co-autora do livro De Olho na Cultura: Pontos de Vista Afro-Brasileiros ( Prêmio do Concurso Nacional de Livro didático sobre Cultura Afro-Brasileira, Fundação Cultural Palmares e CEAO, 2005 ). Doutoranda em Educação na Universidade do Texas/Austin/USA. Mestre em Educação pela Faculdade de Educação da USP – FEUSP. Graduada em Língua e Literatura Portuguesa pela Pontifícia Universidade Católica – PUC/SP. Pertence ao grupo de pesquisa: Rede Cooperativa de Pesquisa e Intervenção em (In)Formação, Currículo e Trabalho da Universidade Federal da Bahia – UFBA . Integra a Associação Brasileira dos Pesquisadores Negros (APN) e coordena a área de relações internacionais desta Associação. Integra a Associação Norte Americana de Pesquisa Educacional (AERA). souzaliz@yahoo.com.br
[**] Termo que quer dizer rainha-mãe e tem sido utilizado para designar o poder político- econômico, religioso, cultural, educacional e militar de rainhas africanas do reino de Meroe, bem antes da era cristã, no Egito antigo , onde hoje se localiza a Etiópia, o Sudão e o próprio Egito.
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