Secretário de Promoção da Igualdade Racial do Governo do Estado da Bahia
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A Flecha de Zumbi Chegou ao Supremo Tribunal Federal
Por Elias Sampaio
Secretário de Promoção da Igualdade Racial
O ano de 2012 será um divisor de águas nos debates
sobre as relações raciais no Brasil. A recente decisão do Supremo
Tribunal Federal em considerar constitucional, por unanimidade, a adoção
de reservas de vagas por critérios raciais, nos vestibulares das
universidades públicas brasileiras destrói todo e quaisquer resquícios
do mito da democracia racial que outrora norteou a sociedade brasileira e
que de há muito o movimento social negro já havia sepultado.
Surpreendentemente, a nossa mais alta corte,
exterioriza para o Brasil e para o mundo, com uma simples decisão, o
elemento chave para se decifrar, de uma vez por todas, o verdadeiro
enigma brasileiro. Isto é, como um país com tantas possibilidades
materiais e imateriais nunca conseguiu dar um salto qualitativo rumo ao
seu pleno desenvolvimento e que sempre que possível se autoproclamou um
“país do futuro”?
Ao assumir a constitucionalidade das políticas de ação
afirmativa para tornar equitativo o acesso as universidades públicas, o
STF revela, de uma vez por todas, qual foi a principal estratégia
implementada pelas elites brasileiras para, mesmo após abolição da
escravatura, manter subjugados a maioria do povo brasileiro: retirar o
direito e a igualdade de oportunidade da ampla maioria da parcela da
população do país do mais importante bem público numa sociedade
democrática que é a educação de qualidade e o acesso ao conhecimento.
Essa trama foi realizada em dois atos, com direito a algumas perversas
manifestações racistas entre eles.
O primeiro foi o sucateamento material e qualitativo
das escolas públicas de primeiro e segundo graus que em algum momento,
no país, foram espaços de oportunidade para educação dos pobres e da
classe trabalhadora como um todo. Como consequência, o segundo ato foi
restringir, ao máximo, e por meio de critérios muito pouco equitativos a
entrada dos alunos pobres e pretos oriundos das escolas públicas nas
próprias universidades públicas. Esse processo, além de nocivo por si,
ainda motivou manifestações de racistas quando da implementação de ações
afirmativas no acesso as universidades. Aqui na Bahia, por exemplo, foi
amplamente divulgada a manifestação racista de um docente da faculdade
de medicina da UFBA que usou de uma comparação estúpida para
desqualificar os estudantes cotistas, utilizando-se, para isso, de uma
referência pejorativa as pessoas que tocavam berimbau, por ser, segundo
ele, um instrumento de apenas uma corda, portanto algo medíocre (sic).
Compreender a importância desses episódios
extremamente complexos e politicamente bem delimitados, é condição
necessária para darmos um salto qualitativo em todos os debates no país,
não apenas relacionadas ao conteúdo e a forma das nossas relações
sociais e raciais, mas fundamentalmente, sobre as possibilidades reais
do Brasil se consolidar como uma das maiores democracias desenvolvidas
do planeta.
Ministro Joaquim Barbosa:
"As medidas visam a combater a discriminação de fato, de fundo
cultural, como é a brasileira" (Foto: Carlos Humberto/Agência BG Press)
Com efeito, essa histórica decisão do STF ratifica o
aviso dado pelo movimento negro há muito tempo de que o racismo
estruturou as relações sociais no nosso país e o preço desse modelo de
sociedade, foi o retardamento do nosso desenvolvimento econômico e
social. Todos os brasileiros, daqui por diante, devem começar a
refletir, e muito, sobre o fato de que o outro lado da moeda do mito da
democracia racial brasileira, outrora propalado, foi o impedimento do
desenvolvimento pleno da nossa sociedade como um todo. Mais do que isso:
todas as manifestações e estratégias realizadas pela maioria de pretos e
pardos no país em busca de igualdade de oportunidades, advindas tanto
nos movimentos das ruas, quanto da militância através das instituições
políticas formais e informais, não foram pautadas para solucionar apenas
os problemas específicos de cada uma dessas organizações e pessoas, mas
sim, manifestações legitimas e com um profundo conteúdo de
transformação no sentido de dar ao país as suas mais amplas
possibilidades de desenvolvimento enquanto nação.
Na verdade, foi a capacidade política de
representantes desses movimentos, de parcela da sociedade civil e dos
gestores comprometidos com essa agenda que possibilitou a criação de um
ambiente favorável a essa decisão do STF uma vez que, o movimento negro
vem pautando as diversas esferas de poder sobre a necessidade do
estabelecimento de mecanismos de institucionalização de demandas
históricas do povo negro do Brasil há muito tempo. A rigor, essa pauta
politica foi sendo introduzida, paulatinamente, nos diversos espaços de
poder na sociedade, desde os espaços simbólicos de poder através das
manifestações artísticas e culturais, até no tecido governamental,
através de mecanismos voltados não apenas para atender as demandas dos
grupos sociais que historicamente estiveram fora de qualquer
possibilidade instrumental e formal para dar consequência burocrática e
de gestão as suas demandas coletivas, mais também, através da construção
de um verdadeiro processo de reformatação estrutural no campo das
políticas públicas.
Na verdade, todos os arranjos institucionais criados a
partir dessa perspectiva vem exercendo um importantíssimo papel
pedagógico, formador de opinião e de capacitação institucional, através
da criação de um campo de forças gerados a partir de um movimento de
baixo para cima, cujo desdobramentos tem sido decisões e ações
relacionadas a ampliação da compreensão dessa questões de forma bastante
significativa. Assim, mesmo considerando apenas o período pós abolição,
é extremamente difícil precisar um ponto especifico, numa linha de
tempo, que pudesse ser considerado o ponto de partida para esse processo
de transformação, uma vez que, várias foram as contribuições, os
movimentos, as iniciativas, as lutas e, até mesmo, o sangue que
compuseram o cenário que possibilitou a decisão do STF, no entanto, não
podemos negar que essa decisão histórica faz parte de um contexto que só
está sendo possível num ambiente que vem se desenvolvendo no Brasil
após a ditadura militar do período 1964 - 1985 e aprofundado a partir de
2003 quando o conteúdo popular e democrático nas instituições públicas
tem crescido enormemente.
De fato, nunca houve um período tão longo na história
do Brasil em que houvesse uma estabilidade política e monetária, com
crescimento econômico e melhoria na distribuição de renda como estamos
vendo nos últimos dez anos, capitaneado por um governo orientado por um
projeto político de esquerda que introduziu nos mecanismos de gestão
mais tradicionais da administração pública outros elementos da Política
que estavam historicamente alijados do processo, pela ação pura e
simples de indivíduos e grupos com perspectivas ideológicas ilegítimas,
tais como: o racismo, o sexismo, o machismo, o preconceito, a
discriminação, a homofobia, dentre outras formas intolerância.
A rigor, o modelo político inaugurado no Brasil há dez
anos atrás vem dando maior concretude, em termos de efetividade da
política pública, a um conjunto de elementos que sempre foram tratados
como, apenas, categorias sociológicas ou níveis de abstração elevados,
tais como a questão da mulher, dos negros, dos indígenas, dos
quilombolas e demais povos e comunidades tradicionais. Ou seja, decisão
do STF é, além de histórica, profundamente emblemática por diversas
razões, mas algumas delas devem ser citadas preferencialmente. A
primeira é que ela se tratou de um julgamento de uma Ação Direta de
Inconstitucionalidade (ADIN), proposta pelo atual Partido Democratas,
antigo Partido da Frente Liberal que por sua vez foi o filho legitimo da
ARENA, o braço político partidário que sustentou a ditadura militar por
vinte anos e as perspectivas das elites brasileiras conservadoras que
foram responsáveis pelo modelo de (sub) desenvolvimento do país
implementado nos quarenta anos anteriores, pelo menos.
Ou seja, além de estarem sendo, paulatinamente,
derrotados democraticamente por via de eleições majoritárias e
proporcionais (executivo e legislativo), a elite conservadora
representada por esses partidos estão começando a serem derrotadas,
também, em uma arena que, via-de-regra, eles ainda possuíam alguma
“vantagem” pelo fato de que no âmbito da justiça, o senso comum sugere
que seja um ambiente impermeável a Política, portanto, menos suscetível a
interferências vindas de outros campos que não seja o da norma e da
técnica jurídica, elementos por excelência mais conservadores e menos
dinâmicos do que aqueles intrínsecos as instituições políticas stricto
senso.
Sessão Histórica. Foto: http://mariafro.com
Uma segunda razão tão importante quanto a primeira, é
que a decisão do STF representa, ao fim e ao cabo, uma das mais
importantes vitórias do movimento negro brasileiro que, incansável e
historicamente, vem apontando problemas e sugerindo soluções para
transformar o Brasil num país mais justo e mais igual partindo de uma
única e simples perspectiva estratégica que é o estabelecimento de
igualdade de oportunidade e garantia de direitos para todos,
considerando as particularidades do processo de desenvolvimento
histórico do nosso povo. Tem sido o movimento social como um todo, e o
movimento negro em particular, os primeiros a demonstrar, de maneira
inequívoca, que a perpetuação das desigualdades sociais, raciais e todas
as formas de intolerância, os elementos que tem impedido o Brasil de se
constituir numa democracia republicana com desenvolvimento econômico
pleno.
Significa dizer que, mais do que um possível
representante dos grandes países em vias de desenvolvimento, na rede
internacional de produção de riqueza material e econômica, como está
sendo desenhado nos últimos anos, o modelo brasileiro pode passar a ser
uma referência global para todos os países com população multiétnicas e
multiculturais do mundo. Uma vez que, as características do nosso
processo histórico fez do país um espaço único e bastante particular que
pode, a partir da mudança de paradigma de seu processo de
desenvolvimento e de relações sociais, fazer de nossa nação o lócus
privilegiado de uma síntese social que tem por base parte significativa
da cultura africana, mas também, de muitas outras culturas do mundo
moderno, constituindo-se, assim, como uma referência para o mundo
contemporâneo, hoje desprovido de um horizonte político e econômico de
longo prazo com uma nitidez suficiente para a superação de seus
problemas.
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