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sexta-feira, 27 de abril de 2012

A Flecha de Zumbi Chegou ao Supremo Tribunal Federal

Por Elias Sampaio
Secretário de Promoção da Igualdade Racial do Governo do Estado da Bahia
www.sepromi.ba.gov.br

A Flecha de Zumbi Chegou ao Supremo Tribunal Federal

 

Por Elias Sampaio

Secretário de Promoção da Igualdade Racial


O ano de 2012 será um divisor de águas nos debates sobre as relações raciais no Brasil. A recente decisão do Supremo Tribunal Federal em considerar constitucional, por unanimidade, a adoção de reservas de vagas por critérios raciais, nos vestibulares das universidades  públicas brasileiras destrói todo e quaisquer resquícios do mito da democracia racial que outrora norteou a sociedade brasileira e que de há muito o movimento social negro já havia sepultado.

Surpreendentemente, a nossa mais alta corte, exterioriza para o Brasil e para o mundo, com uma simples decisão, o elemento chave para se decifrar, de uma vez por todas, o verdadeiro enigma brasileiro. Isto é, como um país com tantas possibilidades materiais e imateriais nunca conseguiu dar um salto qualitativo rumo ao seu pleno desenvolvimento e que sempre que possível se autoproclamou um “país do futuro”?
Ao assumir a constitucionalidade das políticas de ação afirmativa para tornar equitativo o acesso as universidades públicas, o STF revela, de uma vez por todas, qual foi a principal estratégia implementada pelas elites brasileiras para, mesmo após abolição da escravatura, manter subjugados a maioria do povo brasileiro: retirar o direito e a igualdade de oportunidade da ampla maioria da parcela da população do país do mais importante bem público numa sociedade democrática que é a educação de qualidade e o acesso ao conhecimento.  Essa trama foi realizada em dois atos, com direito a algumas perversas manifestações racistas entre eles.

O primeiro foi o sucateamento material e qualitativo das escolas públicas de primeiro e segundo graus que em algum momento, no país, foram espaços de oportunidade para educação dos pobres e da classe trabalhadora como um todo. Como consequência, o segundo ato foi restringir, ao máximo, e por meio de critérios muito pouco equitativos a entrada dos alunos pobres e pretos oriundos das escolas públicas nas próprias universidades públicas. Esse processo, além de nocivo por si, ainda motivou manifestações de racistas quando da implementação de ações afirmativas no acesso as universidades. Aqui na Bahia, por exemplo, foi amplamente divulgada a manifestação racista de um docente da faculdade de medicina da UFBA que usou de uma comparação estúpida para desqualificar os estudantes cotistas, utilizando-se, para isso, de uma referência pejorativa as pessoas que tocavam berimbau, por ser, segundo ele, um instrumento de apenas uma corda, portanto algo medíocre (sic).

Compreender a importância desses episódios extremamente complexos e politicamente bem delimitados, é condição necessária para darmos um salto qualitativo em todos os debates no país, não apenas relacionadas ao conteúdo e a forma das nossas relações sociais e raciais, mas fundamentalmente, sobre as possibilidades reais do Brasil se consolidar como uma das maiores democracias desenvolvidas do planeta.
 

Ministro Joaquim Barbosa: "As medidas visam a combater a discriminação de fato, de fundo cultural, como é a brasileira" (Foto: Carlos Humberto/Agência BG Press)


Com efeito, essa histórica decisão do STF ratifica o aviso dado pelo movimento negro há muito tempo de que o racismo estruturou as relações sociais no nosso país e o preço desse modelo de sociedade, foi o retardamento do nosso desenvolvimento econômico e social.  Todos os brasileiros, daqui por diante, devem começar a refletir, e muito, sobre o fato de que o outro lado da moeda do mito da democracia racial brasileira, outrora propalado, foi o impedimento do desenvolvimento pleno da nossa sociedade como um todo. Mais do que isso: todas as manifestações e estratégias realizadas pela maioria de pretos e pardos no país em busca de igualdade de oportunidades, advindas tanto nos movimentos das ruas, quanto da militância através das instituições políticas formais e informais, não foram pautadas para solucionar apenas os problemas específicos de cada uma dessas organizações e pessoas, mas sim, manifestações legitimas e com um profundo conteúdo de transformação no sentido de dar ao país as suas mais amplas possibilidades de desenvolvimento enquanto nação.

Na verdade, foi a capacidade política de representantes desses movimentos, de parcela da sociedade civil e dos gestores comprometidos com essa agenda que possibilitou a criação de um ambiente favorável a essa decisão do STF uma vez que, o movimento negro vem pautando as diversas esferas de poder sobre a necessidade do estabelecimento de mecanismos de institucionalização de demandas históricas do povo negro do Brasil há muito tempo.  A rigor, essa pauta politica foi sendo introduzida, paulatinamente, nos diversos espaços de poder na sociedade, desde os espaços simbólicos de poder através das manifestações artísticas e culturais, até no tecido governamental, através de mecanismos  voltados não apenas para atender as demandas dos grupos sociais que historicamente estiveram fora de qualquer possibilidade instrumental e formal para dar consequência burocrática e de gestão as suas demandas coletivas, mais também, através da construção de um verdadeiro processo de reformatação estrutural no campo das políticas públicas.

Na verdade, todos os arranjos institucionais criados a partir dessa perspectiva vem exercendo um importantíssimo papel pedagógico, formador de opinião e de capacitação institucional, através da criação de um campo de forças gerados a partir de um movimento de baixo para cima,  cujo desdobramentos tem sido decisões e ações relacionadas a ampliação da compreensão dessa questões de forma bastante significativa. Assim, mesmo considerando apenas o período pós abolição, é extremamente difícil precisar um ponto especifico, numa linha de tempo, que pudesse ser considerado o ponto de partida para esse processo de transformação, uma vez que, várias foram as contribuições, os movimentos, as iniciativas,  as lutas e, até mesmo, o sangue que compuseram o cenário que possibilitou a decisão do STF, no entanto, não podemos negar que essa decisão histórica faz parte de um contexto que só está sendo possível num ambiente que vem se desenvolvendo no Brasil após a ditadura militar do período 1964 - 1985 e aprofundado a partir de 2003 quando o conteúdo popular e democrático nas instituições públicas tem crescido enormemente.

De fato, nunca houve um período tão longo na história do Brasil em que houvesse uma estabilidade política e monetária, com crescimento econômico e melhoria na distribuição de renda como estamos vendo nos últimos dez anos, capitaneado por um governo orientado por um projeto político de esquerda que introduziu nos mecanismos de gestão mais tradicionais da administração pública outros elementos da Política que estavam historicamente alijados do processo, pela ação pura e simples de indivíduos e grupos com perspectivas ideológicas ilegítimas, tais como: o racismo, o sexismo, o machismo, o preconceito, a discriminação, a homofobia, dentre outras formas intolerância.

A rigor, o modelo político inaugurado no Brasil há dez anos atrás vem dando maior  concretude, em termos de efetividade da política pública, a um conjunto de elementos que sempre foram tratados como, apenas, categorias sociológicas ou níveis de abstração elevados, tais como a questão da mulher, dos negros, dos indígenas, dos quilombolas e demais povos e comunidades tradicionais. Ou seja, decisão do STF é, além de histórica, profundamente emblemática por diversas razões, mas algumas delas devem ser citadas preferencialmente. A primeira é que ela se tratou de um julgamento de uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADIN), proposta pelo atual Partido Democratas, antigo Partido da Frente Liberal que por sua vez foi o filho legitimo da ARENA, o braço político partidário que sustentou a ditadura militar por vinte anos e as perspectivas das elites brasileiras conservadoras que foram responsáveis pelo modelo de (sub) desenvolvimento do país implementado nos quarenta anos anteriores, pelo menos.

Ou seja, além de estarem sendo, paulatinamente, derrotados democraticamente por via de eleições majoritárias e proporcionais (executivo e legislativo), a elite conservadora representada por esses partidos estão começando a serem derrotadas, também, em uma arena que, via-de-regra, eles ainda possuíam alguma “vantagem” pelo fato de que no âmbito da justiça, o senso comum sugere que seja um ambiente impermeável a Política, portanto, menos suscetível a interferências vindas de outros campos que não seja o da norma e da técnica jurídica, elementos por excelência mais conservadores e menos dinâmicos do que aqueles intrínsecos as instituições políticas stricto senso.

Sessão Histórica. Foto: http://mariafro.com

Uma segunda razão tão importante quanto a primeira, é que a decisão do STF representa, ao fim e ao cabo, uma das mais importantes vitórias do movimento negro brasileiro que, incansável e historicamente, vem apontando problemas e sugerindo soluções para transformar o Brasil num país mais justo e mais igual partindo de uma única e simples perspectiva estratégica que é o estabelecimento de igualdade de oportunidade e garantia de direitos para todos, considerando as particularidades do processo de desenvolvimento histórico do nosso povo. Tem sido o movimento social como um todo, e o movimento negro em particular, os primeiros a demonstrar, de maneira inequívoca, que a perpetuação das desigualdades sociais, raciais e todas as formas de intolerância, os elementos que tem impedido o Brasil de se constituir numa democracia republicana com desenvolvimento econômico pleno.

Significa dizer que, mais do que um possível representante dos grandes países em vias de desenvolvimento, na rede internacional de produção de riqueza material e econômica, como está sendo desenhado nos últimos anos, o modelo brasileiro pode passar a ser  uma referência global para todos os países com população multiétnicas e multiculturais do mundo. Uma vez que, as características do nosso processo histórico fez do país um espaço único e bastante particular que pode, a partir da mudança de paradigma de seu processo de desenvolvimento e de relações sociais, fazer de nossa nação o lócus privilegiado de uma síntese social que tem por base parte significativa da cultura africana, mas também, de muitas outras culturas do mundo moderno, constituindo-se, assim, como uma referência para o mundo contemporâneo, hoje desprovido de um horizonte político e econômico de longo prazo com uma nitidez suficiente para a superação de seus problemas.

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